26.8.12

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15.4.07

Cap 18: Perguntas e respostas

Anderson encontrou Felipe jogando basquete próximo a sala de ensaios. Ele estava tentando arremessar a bola na velha cesta enferrujada presa à parede.

_ O nome disso é falta de ginga! _ Anderson tomou a bola e girou seu corpo ao redor do de Felipe, esticou os braços e acertou o aro.

_Sei! To vendo tua ginga! _ Felipe riu do ponto que o amigo não conseguira marcar e quicou a bola no chão. _ Aprende comigo...

_Aprender o quê? _ Anderson roubou a bola e enterrou. Seu corpo ficou suspenso no ar por uns segundos. Depois soltou-se e caiu em pé.

_Ok. Foi bonito. _ Felipe riu e eles se abraçaram.

Os dois se entreolharam e afastaram-se. Já fazia um tempo que uma força os unia e na mesma intensidade repelia seus corpos como um choque elétrico.

_Por que chegou tão cedo? Você sempre está atrasado..._ Anderson perguntou.

_Meu pai. Ele começou com aquele papo...

_Senta aí. _ Anderson apontou para a cadeira de ferro de dois lugares.

_Ele não aceita que eu faça teatro, diz que isso é coisa de... Ele acha que homem de verdade tem que arrumar um emprego de carteira assinada e com plano de saúde. Que eu nunca vou ser esse homem, mas um moleque sonhador.

_Eu sei como é. Por isso também saí de casa. _ Anderson passou a unha no relevo rugoso da bola de basquete que segurava no colo. _ Agora eu tenho a minha própria vida. Faço minha faculdade, dou minhas aulas de dança e não largo meu teatro... Enfim, eu sou dono de mim.

_Eu queria ser assim. _ Felipe disse-lhe.

_Para isso vai precisar largar algumas seguranças. Em contra-partida vai ganhar a liberdade que quer. Mas tudo tem um preço, cara. _ Anderson advertiu. _ Se quiser dividir o apartamento, já sabe.

_Valeu. _ Felipe encostou a cabeça na parede atrás do banco.

_Não gosto de te ver assim mal. Desculpe te falar, mas... Eu sempre te vi como uma pessoa infeliz, incompleta, como se você tivesse se tolindo...

_Onde quer chegar?

_... _ Anderson concentrou sua atenção na bola, tentou segurá-la com apenas uma mão. _ ... Não me faça perguntas que você mesmo tem a resposta.

_Vamos ensaiar? _ Angélica interrompeu o diálogo dos dois batendo palmas. Estava muito animada.

_Só se for agora. _ Anderson levantou-se e abriu a porta para que ela passasse.

Ele ligou o som e explicou-lhe os passos que tinha planejado para aquele ato.

_Essa música é bem sensual. Não existe um jeito certo de dançar, mas há um ritmo a seguir...

_Hum... _ Angélica colocou as mãos na cintura.

_Olhe para mim... _ Anderson retirou a camisa e ficou só de bermuda. _ Preste atenção na batida. _ aumentou o som e começou a dançar. _ Mexa a cintura de um lado para o outro, assim... _ ele parou de explicar e colocou suas mãos em Angélica, guiando-a. _... Isso, muito bem. Requebra de ladinho. Issoooo, garota!

Felipe, sentado no palco folheava o script. Ele não conseguia parar de olhar para o amigo. Concentrou-se nas letras impressas, mas a música e a voz de Anderson lhe perturbavam.

_Você tem que liberar tudo! Tira tudo de si... _ Anderson bateu palmas. _ ... Tenta fazer isso aqui, olha só...

Felipe não agüentou e levantou os olhos do papel. Engoliu em seco, sentiu que seu corpo estava esquentando, o coração acelerando. Por que essas coisas lhe aconteciam?

Anderson pôs-se atrás de Angélica e começou a mover o seu corpo com o dela, como se fossem um só, ondulando na batida do Funk. Ela colocou as mãos no rosto de Felipe e incorporou de vez o papel de Catarina. Felipe suspeitou que ela o estivesse provocando, dançando para lhe despertar o ciúme. Não, não, não! Eram maluquices de sua cabeça! Ela não sabia do que sentia por Anderson. Angélica não maldaria... Ou...

Felipe levantou-se irritado e avisou que iria chamar Daniel para o ensaio. Precisava respirar.

2.4.07

Cap 17: Arranhões na imagem

Rique sempre foi um garotinho muito esperto e observador, mas o excesso de cuidados de sua mãe Angélica o tornou indefeso socialmente. Nesta manhã de sexta-feira, ele sentiu na pele as conseqüências disso, quando chegou em casa de rosto arranhado. O boné deu conta de cobrir a marca do tombo que tomara, mas não seria muito fácil esconder do olhar verificador de sua mãe.
Estressado e cansado depois de pensar mil desculpas mirabolantes no caminho da escola para casa de Daniel, ele sentou na varanda de entrada. Parecia adiar a hora de encontrar com sua mãe.
Quem primeiro o viu foi Anderson, que chegou para o ensaio.

_E aí, cara, beleza?_ Anderson tirou o boné para colocar na cabeça e percebeu que Rique escondeu o rosto com a mão. _Iiiih, que foi isso?_ sentou no chão ao lado dele, colocando a mochila entre as pernas.
_Cai._ Rique não queria dar muitas explicações, continuou olhando para frente.
_Pô, aí, pensei que tivesse brigado com alguém... _ Anderson comentou.
_Minha mãe vai me matar. _ Rique segurou a cabeça com suas mãos.
_Por quê, cara? Tipo, tu teve culpa de alguma coisa?_ Anderson esticou as pernas e apoiou o corpo com as duas mãos atrás do seu corpo. Não aparentou se importar muito com o assunto para que Rique se sentisse a vontade.
_Um garoto lá da escola me empurrou e eu cai de cara no chão e me ralei todo._ o menino resmungou e Anderson percebeu seus cotovelos arranhados e manchados de vermelho.
_O que você fez para ele?_ perguntou.
_Ele disse que eu era um boiola, porque eu não sou da turma deles..._ Rique confessou, sem entrar em muitos detalhes.
_ Hum, sei como é._ Anderson percebeu que a situação era delicada. _ E você deixou barato?
_ Quando eu me levantei, o inspetor estava chegando...
_Cara, você não pode deixar eles fazerem isso com você não!
_ Mas a minha mãe vai me matar, quando a professora chamar ela na Escola. Eu estou ferrado!_ Rique estava em um estresse fora do comum.
_Não tem que ficar assim não! Você não teve culpa, tem que aprender a se defender! Vai deixar todo mundo passar por cima e ficar com essa cara de panaca?_ Anderson mostrou seu desagrado.
_ Ela nem vai querer me ouvir!
_ Se você não começar a mostrar a sua força, todo mundo vai passar em cima de você! Não é para você arrebentar ele de porrada não. Só que tem que marcar seu território, se impor, sacou?
Rique pela primeira vez sentiu que tudo não estava perdido. Talvez sua mãe não fosse brigar com ele se mostrasse por aquele ângulo que Anderson sugerira.
Angélica estava preocupada, isso dava para se perceber pelo seu passo apreçado e a mão segurando o pulso a fim de verificar a hora. Onde estava seu filho que não chegara esfomeado da escola?
Ela estancou e parou, assim que viu Anderson estava conversando com seu filho. Desde que soubera que ele era homossexual, ficou com o pé atrás. De que maneira ele poderia estar influenciando seu filho?
_Isso são horas?!_ Ela colocou as mãos na cintura e o olhou de cima. Rique lentamente levantou o rosto e Angélica levou a mão na boca com o que viu._ Mas o que é que fizeram com você?
_Ele se defendeu de um garoto da escola. Seu filho é muito forte! _ Anderson ficou de pé, junto com Rique e colocou seu braço em cima dos ombros do garoto._ Ele não deixa ninguém passar por cima dele, né?!
_É._ Rique concordou com a mentira e se sentiu importante.
_Hum..._ Angélica olhou para os dois. _ Já para dentro! _ exigiu apontando com o indicador para a porta de entrada.
_Tá. _ o menino obedeceu e deu um aceno para Anderson.
_Vai lá, cara..._ Anderson riu. _ E, aí, Angélica, vamos ensaiar hoje aquele ato musical da peça?
_ Mas é com você? Pensei que fosse com o Felipe. _ ela comentou e de repente teve medo de ter parecido preconceituosa, o que nem fora sua intenção. Na realidade, via Felipe se exibindo tanto, que não imaginava que teria que aprender alguma coisa com Anderson.
_Ah! Sim, ele gosta de dançar... Mas eu sou o professor de dança.
“Professor de dança, hummm...”, Angélica ligou alguns pontos soltos em suas teorias.
_Tudo bem, vamos sim. Mas antes eu vou dar uma olhada naquele garoto lá!
Angélica entrou e foi cuidar do seu filho, mas não estava tão chateada com ele. Suas concepções acerca de Anderson ocupava mais a sua mente.

27.3.07

Cap 16: É pressão até o fim

_Nossa, você é perfeita para esse papel! _Taieko subiu pela escada lateral do palco aos pulinhos e abraçou Angélica, que sorriu timidamente. Felipe e Anderson concordaram com um aceno de cabeça.

Angélica e Taieko desceram do palco e foram ao encontro do grupo. A moça olhou para Daniel na expectativa de ouvir a opinião dele, o autor da personagem que acabara de interpretar. Olhou nos olhos do rapaz em espera.

_Você está pronta para o sucesso? Para as câmeras, entrevistas, para que todo mundo saiba o que você fez? _ perguntou, projetando para o futuro a conseqüência de um possível êxito.
_Estou. _ ela respondeu. _ Você acha que está tão bom assim é?_ brincou para ver se arrancava alguma reação positiva dele.
_Eu pensei que a Catarina só existisse na minha cabeça, mas ela estava ali na minha frente há alguns minutos, impressionante. _ rendeu-se em elogios.
_Exagerado._ Angélica riu. _ Acho que teremos muita coisa para fazer, em pouco tempo.
_E Patrícia?_Taieko tinha que lembrar daquela parte e quebrar o clima de euforia?
_Bom... _ Daniel respirou fundo e encolheu os ombros. _ Não tem como ela recuperar o pé... Então, vamos ter que tocar isso com a Angélica mesmo...
_Vocês estão bem?_ Taieko perguntou, misturando ali a amizade e o profissionalismo.
_Não sei..._ Daniel olhou para o sapato, meteu as mãos nos bolsos. _ Melhor não pensar nisso...
_Você vai ter muita coisa para pensar agora, estará com a cabeça ocupada. _ Angélica lembrou-o._ Que tal começar revendo a alocação do teatro?_ sugeriu.
_Boa idéia! _ olhou para o relógio e bateu duas palmas._ Galera, vou correr para agitar isso, a tarde ensaiamos, pode ser? Duas horas.
_Tá, vai lá... _ Felipe deu uns tapinhas nas costas de Daniel.
_Nós temos que ver se todos os figurinos cabem em você._ Taieko falou olhando para as roupas penduradas atrás do palco.
_Claro._ Angélica segui-a e sentiu um frio na barriga com o que se deparou: um vestido curto vermelho decotado, perucas, saltos e diversos assessórios provocantes. Se alguém visse aquela peça significaria sua excomunhão.

“Você está pronta para o sucesso? Para as câmeras, entrevistas, para que todo mundo saiba o que você fez?”, a pergunta de Daniel ressoou mais uma vez em sua cabeça.

_Acho que está tudo certo, vocês têm o tamanho parecido...
_Angélica, escuta essa?!_ Felipe interrompeu a conversa das duas, que se viraram para dar a atenção que o rapaz pedia. Ele apertou o botão no aparelho de som e começou a tocar a música Adultério do Mr. Catra. _ Tara tatara tara tara tatara tara tara É! _ ele deu uma risada alta e começou a rebolar, se exibindo. _ Sabe esses dias que tu acorda de ressaca. Tua roupa tá cheia de lama e a cachorra tá na cama. É! É o dia que a orgia tomou conta de mim. Tan tan tan tan tan tan. Antes, durante e depois...É pressão até o fim!Tan tara ta tan ta._ Felipe abaixou o som. _ E aí, vai aprender a dançar com o papai aqui? _ riu.
Angélica sentiu que a ficha começava a cair. Aceitar aquilo era de fato se preparar para ser levada à fogueira da condenação moral. A música fazia parte de um trecho da peça em que Catarina conta em seu diário que achava um absurdo aquelas músicas de funk serem tocadas em festas de crianças, mas no fundo adorava o ritmo e tinha muita vontade de dançar.
_Depois a gente vê isso..._ Taieko fez pouco caso e voltou-se para as roupas de novo. _ Ele está se exibindo para mim. _ balançou a cabeça para os lados e menosprezou.
_Como assim?_ Angélica franziu a testa, enquanto Taeiko apertava o vestido na sua cintura medindo por cima da sua roupa.
_Felipe pediu para ficar comigo, nós ficamos e tal, mas não quero levar isso a diante... _ Taeiko explicava tudo sem qualquer emoção. _ Ele só quer curtição mesmo e eu to ligada em outro carinha...
_É? _ Angélica levantou as sobrancelhas sem saber muito o que dizer.
_E esse carinha sabe que o Anderson gosta de você?_ Angélica tomou a liberdade de alfinetar. Já fazia tempo que observava como Anderson ficava de cara fechada e triste, quando Felipe e Taieko desbravavam papos que não incluíam o rapaz. Agora que eles estariam envolvidos em um mesmo trabalho, seria interessante que estreitassem os laços de confiança.
_O Anderson? Tá viajando,né? _Taieko balançou o rosto para os lados.
_Então, eu estou vendo demais... Porque ele se incomoda com o fato de você e Felipe estarem sempre tão juntos...
_Angélica..._ Taieko olhou para os dois amigos que conversavam perto do aparelho de som a alguns metros, estavam concentrados o suficiente para não ouvir o assunto das duas. _ Não é de mim que ele gosta.
_Não? De quem então?_ Angélica estava confusa.
_Olha bem..._ Taieko indicou com a cabeça para o lado.
_Ãnh? Que tem? Que que tem aver o Felipe com o... _Angélica sentiu as palavras travarem na boca.
_Hãhãn..._ Taiko fez que sim com a cabeça e deu um grande sorriso. _ Exatamente isso que está pensando.
_Eles são gays?! _ ela sussurrou com uma careta de horror.
_É mais complicado que isso... _ Taieko parou de remexer nas roupas, colocou-as no cabide de volta e ficou de braços cruzados, contemplando os dois, junto com Angélica.
_O pai do Felipe é muito sério, um homem cheio de preconceitos, não admitiria nunca que o filho sonhasse em assumir sua verdadeira opção...
_E o Anderson?
_Ele é assumido sim, mas só para nós. Não sai por aí beijando na boca de qualquer cara. A sociedade ainda é muito preconceituosa. Mas eu sei que no fundo a paixão dele é o Felipe. Só que o Felipe é muito fraco, não assume isso nem para ele mesmo.
_Perai, então, quem te garante que ele gosta do Anderson também, ou sei lá, que ele é gay?_ Angélica tinha tantos preconceitos que para ela era tudo uma grande aberração.
_Shiii, isso é mais complexo do que você imagina..._ ela balançou a cabeça para os lados.

Angélica desejou que não tivesse sabido de nada daquilo e continuasse achando que Felipe e Anderson eram apenas amigos.

A cada passo que dava adiante, sentia que estava saindo do paraíso.

25.3.07

Cap 15: Dando vida a personagem

Angélica ficou algum tempo olhando o palco parada sozinha no meio do salão. Pelo tempo que telefonara, Felipe, Anderson e Taieko já estavam para chegar. Ela ergueu as páginas do script que tinha em mãos e checou se todas as frases estavam realmente em sua memória. Ela sabia que poderia falhar, já que o tempo é capaz de enferrujar um talento. Mas queria arriscar, tomar aquela decisão sozinha, independente da ordem de qualquer pessoa.

Angélica olhou o relógio no pulso marcando dez horas da manhã. Era hora de ligar para Daniel. Por fim sacou o celular do bolso e discou.

_Alô?_ ele atendeu o telefone do escritório e reconheceu a voz dela do outro lado. _ Onde você está? _ estranhou aquela ligação.
_Daniel, queria que você viesse aqui na sala de ensaios, pode ser? Tô te esperando.
_Tá, mas o que está acontecendo?_ ele não entendeu nada.
_Por favor, vem aqui? Está tudo bem, não se preocupe._ tranqüilizou-o.
Daniel levantou-se e caminhou para os fundos da casa intrigado. Mas antes que chegasse lá, o interfone tocou. Eram seus três amigos. O que eles queriam? Não vinham vê-lo desde a última reunião em que Daniel informara que a peça era inviável por falta da atriz principal.
_ Nós viemos ver a Angélica, ela ligou para a gente hoje de manhã bem cedo. _ Anderson foi o primeiro a dar uma explicação para a visita repentina deles.
_É?_ Daniel definitivamente estava perdido._ Ela também me ligou agora pouco, disse que era para eu encontrá-la na sala de ensaios...
_Ela também disse isso para a gente. _ Taieko contou.
_Vamos até lá então, galera?! Agora sou eu que estou curioso!
_’Bora!_ Anderson também se animou e eles seguiram pela lateral da casa até chegarem aos fundos. Deram de cara com a porta fechada e um aviso pregado nela dizia: “Entrem e sentem-se”.
Eles entreolharam-se e Taieko tomou a iniciativa de virar a maçaneta. Aparentemente estava tudo normal e nos seus devidos lugares, exceto pelas quatro cadeiras de frente para o palco. Felipe ainda gritou por Angélica e sua voz ecoou pelo grande salão. Daniel fez sinal com a mão para que parasse, não queria quebrar o clima de surpresa e expectativa.
_ O que significa isso? _ Felipe apontou para o palco vazio.
_Eu não sei, cara! To tão perdido quanto voc...
_Ah! Essa vida de mãe de família..._ Angélica surgiu por uma escada por trás do palco e sua voz silenciou o grupo, que a olhou atônito.
Ela vestia um roupão de banho e tinha os cabelos escondidos por uma toalha em forma de turbante.Daniel sentiu os pêlos dos braços arrepiarem.
Angélica sentou-se diante de um móvel voltado de frente para o palco e com um algodão fingia remover a maquiagem, olhando-se em um espelho invisível. Eles reconheceram que aquele era o terceiro ato da peça, o único que pedia a atuação apenas da atriz principal. Ela, então, estava assumindo aquela tarefa para mostrar para eles que era capaz de ajudá-los a seguir com a idéia? Essa era a pergunta que passava na cabeça de todos.

_Eu tive um dia pesadíssimo! _ Ela olhou para frente e parou de se demaquilar. _ Coloque as crianças fora da cama! _ levantou-se._ Dá o leite para o gato, põe o pão na mesa... _ andou de um lado a outro do palco, fazendo sua voz ficar ofegante. _ Banco, feira, veterinário, escola de novo._ Respirou fundo e apertou o peito com a mão._ Ontem eu estava corrigindo o dever de casa do Paulinho. Tinha uma pergunta assim: O que o seu pai faz? Ele trabalha o dia inteiro. O que sua mãe faz? _ ela fez uma ligeira pausa._ Minha mãe não faz nada, fica em casa o dia inteiro. _ O rosto de Angélica incorporou um semblante de ironia. _ Incrível!_ balançou a cabeça para os lados e arrancou um leve riso de Felipe. _ Todo dia é sempre igual. _ ela pegou o diário que estava na penteadeira e o abraçou. _ Daqui a pouco chega o Ronaldo arrotando o macarrão com coca-cola. _ Suspirou profundamente e caiu sentada em cima da cama que Daniel havia colocado ali, por sugestão sua, no último ensaio._ Sexo depois de dez anos de casada é assim..._ Angélica fez um ar de tédio absoluto. _ Igual aquela lojinha de conveniência. Não tem nada de diferente, mas às quatro da manhã está ali..._ Apontou para a cama.

Os quatro riram. Conheciam aquele texto como o pai-nosso, mas na interpretação de Angélica conseguia ganhar vida. Eles olharam para Daniel, como se ele fosse responsável por convencê-la a encarar aquele desafio. Tudo parecia um grande milagre para ele.

Angélica dominava o palco, parecia estar no próprio quarto, totalmente à vontade. Ao terminar o trecho que ela havia escolhido para mostrar-lhes, parou em pé, de frente para sua pequena platéia e sorriu, deixando a personagem sair de seu corpo.

Ela estava ansiosa para saber o que eles acharam.

23.3.07

Cap 14: Uma sensação de querer fazer uma coisa

"Enquanto eu estava no meio daquelas pessoas, pensei no poder tão forte capaz de acimentar todos os diferentes tipos em um só pensamento, uma só crença, um só lugar. Formavam juntos uma massa manipulável e feliz. Feliz por acreditar que tudo que seguiam era o certo, não havendo outros caminhos, nem salvação para aqueles que não participassem daquele seleto grupo. Respeitei a ingenuidade de cada um e procurei manter-me sério e com uma postura de imparcialidade a fim de preservar Angélica de qualquer constrangimento, pelo contrário, desejava que ela nem desse por minha presença ali. Seguia assim, todas as coordenadas de minha mãe. Ela me aconselhara antes de criticar Angélica, tentar entender o universo no qual ela estava inserida. Tudo que pude concluir era que aquela estrutura era mais forte do que qualquer movimento de força que eu pudesse fazer para abalá-la na mente de Angélica. Não havia jeito, essa batalha era completamente perdida. "

Daniel fechou o diário e ficou ali imóvel em sua cadeira. Não tinha muito em que se preocupar, já que Angélica conseguia praticamente catalogar todos os seus compromissos e deveres, não havendo um que não estivesse “dentro do orçamento” e “das medidas previstas”. Aqueles bordões já se tornaram quase uma pilhéria para ele. Tudo corria perfeitamente bem, novos alunos surgiam para as aulas de violão; a companhia de dança se preparava para uma apresentação na festa do bairro e as contas milacrosamente seguiam em dia. Só o grande vazio e tristeza era saber que sua peça morrera, antes mesmo de chegar ao palco. Como pudera mentir para seus amigos? A que ponto chegara? Por que não lhes dissera que não havia atriz nenhuma para substituir Patrícia? Sua esperança de que Angélica pudesse se encantar com o brilho e a glória de ser uma estrela era uma mera projeção da figura de Patrícia naquela intrigante mulher que habitava sua casa.

Ela era muito diferente. Não tinha o espírito adolescente de quem deseja aparecer a qualquer preço, não mede riscos e tem coragem para cometer as maiores loucuras. Tudo nela tinha um grau de prudência e racionalidade que a tornava incompatível com Daniel. Era nisso que ele refletia neste momento sentado sozinho, às dez e meia da noite, no escritório. Como, então aquela equação conseguia dar resultados positivos?

_Posso apagar a luz da sala ou você ainda vai voltar para lá?_ Angélica apareceu na porta, era rotina sua verificar se tudo estava em perfeita ordem, antes de dormir.
_Pode, claro.
_Tá..._ ela continuou em pé, com ar reticente de quem viera até ali por outro motivo. _ É... Você está muito ocupado agora?
_Não. Não _ Daniel recostou-se na cadeira e ficou se balançando levemente para os lados.
_Podemos conversar?_ ela entrou contidamente e parou diante da cadeira.
_Sente-se._ Daniel indicou o acento e ela se sentou. Demorou um pouco para achar as palavras. _ É... _ sorriu, olhou para baixo. _ É sobre ontem... Eu gostaria de conversar com você sobre...
_Sobre eu ter ido com vocês na igreja? _ Daniel tentou facilitar o diálogo.
_É... _ Angélica mexeu no cabelo, jogou-o para o lado. _ Eu queria que me dissesse o que passou pela sua cabeça, enquanto estava lá...
_Que eu diga?_ Daniel franziu a testa e pensou um pouco, aliás, pensou tanto que Angélica achou que não queria responder.
_ Deixa, deixa... Você deve estar cansado...
_ Eu acho que tudo que eu diga não vai mudar nada do que você crê. Porque para aqueles que não acreditam nem um argumento é suficiente. Mas para quem acredita, nem argumento é necessário..._ Daniel, enquanto falava fazia um desenho imaginário com o dedo no tampo da mesa.
_Eu não quero que mude o que eu penso, eu quero ouvir o que você acha.
_Por que isso é importante para você?_ Daniel olhou-a nos olhos, averiguando até onde poderia ir.
_Porque tem coisas que também me incomodam._ Angélica disse aquilo com uma voz para dentro, medrosa. _ Eu só queria ter alguém para conversar...
_Então, vem comigo. _ Daniel levantou-se e fez sinal para ela segui-lo.Ela olhou para os lados, franziu a testa e decidiu acatar as ordens. _ Anda, quero te mostrar uma coisa. _ Daniel sabia como ninguém teatralizar todas as situações, tornando a vida uma deliciosa cena de um contador de histórias.
Eles foram para o lado de fora da casa e chegaram na piscina. Angélica estava em seu auge da curiosidade, quando ele apontou para o alto. O que queria mostrar-lhe estava bem ali, acima de suas cabeças.
_Que tem as estrelas? _ Angélica olhou para o céu azul e limpo, com seus pontos luminosos emoldurando a lua.
_ São lindas né? _ Daniel com as mãos no bolso, olhou-a de lado. _ Muitas pessoas morreram por causa delas.
_ Ãnh?_ Angélica parecia confusa.

Daniel sentou-se em uma das espreguiçadeiras e depois se deitou. Angélica sentou em uma outra ao seu lado.

_ Um dia alguém disse que a Terra não era plana e os planetas não giravam ao redor dela e foi morto por isso. Como provar se não havia as espaçonaves, os satélites? Um dia algumas mulheres conhecedoras das ervas e da natureza começaram a curar e também foram mortas por isso. Todas essas pessoas ousaram contestar aquilo que estava sendo imposto. _ A voz de Daniel era pausada e envolvente. _ Existe de fato um Deus dentro das igrejas. Um Deus que salva, que é amor, paz e traz a fraternidade e a vida. Mas existe ali também o homem. E esses homens começam a guiar os outros homens conforme as leis que eles mesmos criaram. Esse Deus que pregam não é para todos, não é democrático, é para tão poucos. Só para os escolhidos.
_Não é verdade, eu discordo. _ Angélica começou a incomodar-se, mas não podia parar, afinal, não fora ela que incitara aquele diálogo?
_Ontem, enquanto estava lá com você e o Rique, ouvi que havia dois grupos. Aqueles que eram parte daquela comunidade e os que eram do mundo, ou seja, os que eram de fora. Para os que estão de fora não há salvação. Porque eles bebem, usam camisinha, transam antes do casamento, usam roupas curtas, ouvem a música que quiserem? O que incomodam não é bem o que as pessoas fazem, mas como elas tem o livre arbítrio de fazerem o que bem quiserem, sem seguir as ordens de um ditador. Isso é deixar a massa dispersa. Para evitar que isso aconteça as sociedades judaico-cristães impregnaram seus fiéis com o sentimento da culpa. Será que é coincidência as nações que foram criadas em cima do calvinismo e outras crenças que louvavam o dinheiro e o trabalho serem hoje em sua maioria de primeiro mundo? Será que é coincidência pura o fato do louvor a pobreza ter sustentado uma massa sempre disposta a dar tudo que tem para continuarem sempre no mesmo estrato social?
_Não posso chamar de coincidência ou não, mas também você não está considerando uma ordem enorme de outros fatores...
_Pode ser... _ Daniel deu de ombros, não estava nem um pouco preocupado em debater idéias, suas opiniões eram muito fortes e firmes.
_Já está comprovado que as religiões fazem bem, renovam a vida das pessoas, que...
_Angélica, eu não disse que não era bom._ Daniel consertou. _ Apenas não é totalmente certo o sistema de escravidão camuflado que existe. Olhe para você mesma! Deixou de fazer um monte de coisas, porque alguém te mandou? Eu te dei a chance de brilhar em uma grande peça e você mentiu para si mesma que não teve a menor vontade de tentar?
_Ah! Lá vem você com essa história?! _ Angélica não gostou daquele assunto vindo à tona.
_Tudo bem, esquece... _ Daniel continuou olhando as estrelas.
_Sua mãe nunca te levou a nenhuma igreja, não te deu nenhuma religião?
_Não, nunca me obrigou. Mas aprendi muito com uma pessoa, uma pessoa maravilhosa... _ Daniel sentou-se e pareceu que iria se levantar para entrar, mas não, sentou-se para ficar de frente para Angélica._ Foi a pessoa mais genial que eu já pude conhecer... Eu amava ela como minha mãe. Na verdade, ela foi para mim uma avó.
_Você fala no passado, ela já morreu?
_Já..._ Daniel massageou a palma das mãos, balançou levemente a cabeça para os lados e respirou fundo. _ Quando ela faleceu, eu lembro bem, eu cheguei da escola todo suado, tinha jogado a tarde inteira futebol, só queria comer o pão com ovos que ela fazia. Minha mãe estava na porta do quarto e chorava. Eu nunca tinha perdido ninguém. Mas ela era muito para mim. Muito mesmo. Se chamava Fátima. Morreu muito velha mesmo, mas morreu sorrindo. E parece que eu ainda posso entrar correndo, que ela vai estar na cozinha preparando a comida que eu gostava... _ Daniel sentiu que a voz ia embargar.

Ele olhou para Angélica e pensou na foto da menina que havia na estante da sala da casa da sua mãe. Fátima sempre que limpava os móveis, pegava a foto por alguns instantes e mergulhavam em um silêncio. Sua mãe lhe contara que Fátima cuidara de Angélica também, enquanto esta ainda era muito pequena e sua mãe Alice estava em coma. No período que o pai de Daniel ainda achava que Angélica era sua filha, Fátima também fez de tudo para preservar a menina de toda aquela confusão em que vivia aquela família. Talvez, vó Fatinha, como chamava, iria adorar ver a mulher que hoje é a garotinha da foto.

_ A gente estava falando sobre religiões, quando você se lembrou dessa mulher...

_Ah! Sim!_ Daniel retomou a origem do assunto. _ Ela me ensinou muito sobre as religiões. Era uma mulher extremamente sábia. Depois me interessei a ler livros, pesquisar sozinho e me interar das coisas. O conhecimento liberta, te abre a mente para outras visões de mundo._Bom, te trouxe para ver as estrelas e acabamos falando de tanta coisa... _ Daniel levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos._ sua posição favorita de recolhimento.

_Eu que ocupei seu tempo... _Angélica riu e levantou-se também.
_É... _ era a vez dele estar procurando as palavras. _ Sua mãe disse que você era uma grande atriz.
_Minha mãe? Só pode ser uma piada! Ela sempre falou que isso nunca me levaria a nada.
_Enfim, ela falou isso uma vez para minha mãe. _ Daniel reafirmou._Eu gostaria de te ver atuar. Só para ver mesmo. Um dia que se sentir a vontade, você não esquece tá?... _ Daniel sorriu e entrou.

Angélica olhou mais uma vez as estrelas e sentiu um frio na barriga, uma sensação de ter vontade de fazer uma coisa, mas ter medo.

18.3.07

Cap 13: Divisor de águas

Daniel saiu da casa de sua mãe com a cabeça martelando. Não queria retornar para a sua agora. Preferiu entrar no shopping, dar um volta, ficar sozinho. Na bilheteria viu o cartaz de um filme e decidiu assistir. Ocorreu-lhe que talvez precisasse abstrair tudo.

Patrícia já estava tão longe dele, magoadíssima por não poder estar na peça. Mas que peça? Agora que seus amigos também estavam com raiva dele e Angélica nem podia olhá-lo nos olhos depois de tudo que ele lhe dissera?

Ali, sentado naquela poltrona vermelha, da sala escura, ele não tinha responsabilidades, nem precisava dar respostas. Era só um jovem comum de jeans, em uma sessão vazia.

O filme não prometia nada, mas se encaixava perfeitamente com sua vida. Chamava-se “Letra e música”. Consistia na estória de um antigo astro pop que precisava compor uma música em uma semana. Ele encontra, então, uma mulher que a todo custo quer contratar como letrista, mas esta se renega. Em vários momentos Daniel se viu na tela e pensou que Angélica pudesse ser essa mulher. Deveria seguir os conselhos de sua mãe.

Ele assim que chegou em casa, encontrou na sala mãe e filho de mãos dadas, roupa impecável e passos de quem vão sair.

_Vão a igreja?_ perguntou. _Posso ir junto?_ se ofereceu antes de ouvir resposta para a primeira pergunta. _ Eu levo de carro.
_Oba!_ Rique pulou animado.
_Para quê?_ Angélica desconfiara daquela proposta, sabia muito bem o que ele pensava sobre suas crenças. De todo modo não poderia impedi-lo de ir.
_Rique, toma a chave e me espera lá fora, tá?_ ele se abaixou para falar com o garoto e deu um soquinho em seu ombro.
Agora à sós, colocou as mãos no bolso e olhou para baixo. Viu que Angélica calçava salto alto e usava um belo vestido longo florido. Perdeu-se no figurino e esqueceu o que iria lhe falar.
_Eu estou atrasada... E sei muito bem o que você pensa sobre...
_Eu vou ficar calado. Prometo.
_Daniel..._ ela riu, para tentar não perder o humor, nem a paciência._ Não precisa fazer isso como desculpa por ontem, não tem que ir...
_Eu tenho o direito de rever meus conceitos._ ele argumentou humildemente.
_..._ Ela coçou a testa, suspirou e o olhou nos olhos._Claro..._ Soltou as mãos ao longo do corpo e seguiu em direção a porta.
Ao chegarem de carro diante do prédio, pareciam uma família. Angélica adorou aquela sensação e não escondeu isso no sorriso que se abriu. A sensação de segurança era muito boa. Pensou em como Rique merecia que seu pai estivesse ao seu lado. Mas não era mais tempo de mágoas e nem flash back, porque a pregação iria começar.
Daniel ao lado de Angélica cumpria seu trato de ficar calado, no papel de mero ouvinte. Ele estava ali para entender melhor aquela mulher.
O homem polidamente vestido começou a falar sobre os pecadores e aqueles que eram do mundo. Em nenhum momento Daniel fez qualquer ar de deboche, soltou risinhos, ou balançou a cabeça para o lado, porque estava sobre a mira dos cantos dos olhos de Angélica.
Ele encarou aquilo como um laboratório, executando a prescrição de sua mãe.
_Você que é pai, que é mãe, não deixe seus filhos verem novela. É coisa do demônio. Você que é mãe, não deixe suas filhas ouvirem essas músicas imorais, porque depois ela vai aparecer grávida e você não sabe por quê.
Angélica começou a se sentir incomodada com o discurso, porque suspeitava que Daniel estivesse interiormente achando tudo uma grande estupidez e a julgando uma burra.
O homem continuou a descrever como deveria ser o comportamente daqueles que seriam salvos, separados e seletos para a glória final. Tudo terminou com uma belíssima música de um coral e a aparente família se dirigiu de volta ao carro.
Foi Angélica que quis romper o silêncio, quando chegaram em casa. Após colocar Rique para dormir, encontrou Daniel no escritório no lap top:
_Boa noite..._ fez um ar de despedida, mas Daniel fixou o olhar, entendendo que ela queria entrar e falar-lhe. _ Eu não entendi sua atitude hoje... Nem onde quer chegar...
_Eu critiquei ontem preconceituosamente o que você acredita. Achei que deveria me pôr no seu lugar para te entender melhor.
Por que ele precisava perder seu tempo entendendo sua empregada?, Angélica indagou-se.
_Não se preocupe, eu não vou discutir com você sobre nada que ouvi lá. Ao menos que um dia queira. _ ele deu de ombros e sorriu.
_... Tudo bem..._ Angélica abaixou os olhos, virou-se e saiu.
Daniel pensou se aquilo tudo de fato surtiria efeito. Mal ele sabia que era o divisor de águas de tudo que se sucederia.