31.1.07

1 Quem precisa de uma administradora?

Alguma coisa irritante tocava bem longe, mas Daniel não tinha força para impedir aquele esquisito barulho imerso nas nuvens brancas:

_Acorda, vou correr._ sentiu um empurrão no braço e abriu os olhos. A primeira coisa que viu foi o despertador em cima do criado-mudo e a segunda foram as pernas da sua namorada Patrícia. Olhou para cima de olhos semi cerrados por causa da claridade que entrava pela janela que ela acabara de escancarar._ Já são dez horas e você ainda está mofando, nesses lençóis?

_Ai, onde está aquela cena de comercial de margarina? Agora não era a hora de você entrar na ponta dos pés e me acordar com um beijo suave..._ ele falou com a voz arrastada e sonolenta._ ... eu quero aquelas torradas com uma flor ao lado na bandeja...

Patrícia já não ouvia mais nada além de “Promiscuous Girl” que acabava de acionar no seu mp4.

Daniel tinha a sensação que ao amanhecer do dia ela perdia os encantos. Não entendia como conseguia ter tantas Patrícias dentro de uma única mulher, sempre mutável. Ela fora para sua corrida diária e só lhe restou levantar. Se olhou no espelho com o cabelo para o alto e a cara pálida. Bem nesse momento o telefone tocou e o número indicado não lhe entusiasmou.

_Fala, mãe..._ atendeu.
_Está tudo bem, bebê?
_Sim, mãe, só estou acordando._ ele procurou a pasta de dente no armário do banheiro.
_Ótimo, então, abra o portão para mim.
_Quê?
_Anda, filhote, o pão vai esfriar.
_Mas você não estava viajando com o papai em Cabo Frio?
_Claro, estava, agora eu estou torrando sobre um sol terrível no seu portão!
_Ãnh..._ ele se viu sem ação. Será que ainda dava tempo de dizer que contraíra uma doença infecciosa e...
_Daniel!
_Tá bom, mãe, já vou..._ ele revirou os olhos e desceu as escadas que davam na sala, caminhou descalço pelo corredor e chegou até a cozinha, onde apertou o botão para que o portão abrisse lá fora.

Calculou por quantos segundos sua paz iria durar: 1, 2, 3, 4, 5...

_Meu ursinhooo..._ Daniela chegou cheia de sacolas, mas só uma delas o interessava, a do pão._ Não vai me perguntar como foi a viagem?
_ “Como foi a viagem, mãe?”_ repetiu ele com a boca cheia de pão e lambuzada de manteiga.
_Não fale de boca cheia, menino!_ ela lhe deu um tapa na nuca._ Foi maravilhosa!_abriu a geladeira e se assustou, estava vazia._ Quê? Você está fazendo uma dieta à base de tomate, maçã e gelo? Saiu no jornal que uma modelo morreu de anorexia... À propósito, você lê os jornais? Eu renovei a assinatura do Jornal O Globo para você.
_Valeu..._ Ele se escorou na mesa e bocejou, se espreguiçando.
_Então, me conte tudo!_ ela sentou-se em sua frente. Estava bronzeada, com um lindo sorriso, cabelo escovado, uma mulher deslumbrante como sempre, mas que lhe tirava a paciência, quando queria verificar o quanto sua vida não andava saudável.
_Bem, a peça estréia daqui a dois meses. Estamos ensaiando muito...
_Você ainda está com aquela sanguessuga?_ perguntou sua mãe.
_Pensei que quisesse saber da peça, conseguimos um teatro...
_Ela está acabando com você! Não compra nada mais para casa, não se alimenta, você está um bagaço...
_Obrigado, mãe..._ ele levantou-se e a deixou sozinha na cozinha, mas Daniela levantou-se e seguiu-o. Estava com todo vigor e energia.
_Não é uma perseguição, não... Eu só acho que ela está se aproveitando de você!_ a mãe de Daniel entrou no quarto e parou na porta. Fez uma careta de horror, que ele não viu, pois já estava com a cara enfiada no travesseiro e o corpo jogado em cima da cama. _Olha isso? Camisinha por toda parte! Quantas mulheres dormiram aqui?!
_Mãe, sabe por que eu não moro mais com você?_ Daniel sentou-se.
_Mas deveria!_ ela cruzou os braços.
_Por isso! Porque eu preciso ter vida própria! Quando eu vivia enterrado nos meus livros e administrava muito bem a casa de cultura você não gostava, mas quando arrumo uma garota legal...
_Legal? Bebê, ela é uma máquina de sexo! Olhe para isso!_ pegou um espartilho caído no chão. _Antes você com teias na boca e virando Polenguinho que se resumir a esse homem acabado e manipulado!
_Mãe, eu sei o que eu faço..._ perdeu a vontade de discutir.
_Daniel você precisa tomar duas atitudes urgentes: número 1, jogar essa garota ridícula pela janela e número dois, conseguir uma administradora para essa casa. Assim terá mais tempo para cuidar de você e me fazer feliz... _ ela sorriu.
Daniel franziu a testa e levantou uma das sobrancelhas:
_Onde está querendo chegar?
_ Então, preciso te pedir um favor..._ ela puxou com a ponta do dedo e uma cara de nojo a ponta do lençol e sentou-se no colchão.
_Lá vem..._ Daniel caiu de costas.
_Tome..._ Daniela retirou do bolso da calça jeans um pequeno papel e deu na mão de Daniel.
Ele sentiu que a explicação para ela estar ali implicando com sua vida estava naquele minúsculo quadrado de papel.
_É o telefone da sua administradora.
_Como você é rápida, mãe, nem deu tempo de eu te ligar para dizer que precisava de uma!_ ele falou sarcástico e leu o nome que havia em cima do número: “Angélica”, escrito com uma caneta azul.
_Ela não pode saber que fui eu que lhe indiquei.
_Não?_ Daniel sentou-se outra vez e adorou o gostinho de colocá-la contra a parede._ Por quê?
_O que importa você saber é que ela já sabe que você está precisando de alguém para ajudar com as contas, com a administração disso aqui e...
_Perai! Você já falou com ela?
_Hum..._ Daniela deu um risinho sem graça._ Já.
_Aposto que deve ter um motivo muito forte, porque se for para empurrá-la para cima de mim, é melhor...
_Não! Não! Ela é diferente, totalmente diferente!_ Daniela balançou as mãos no ar._ Nem vai querer saber de você.
_Ela é lésbica?_ ele cruzou os braços, definitivamente aborrecido.
_Não, eu não vou ficar contando, quando você conhecer, você vai saber...
_Quê? Mãe...
_Fofuxo, a mamãe marcou aula de Pilates..._ levantou-se e bateu em retirada.
_Está achando que isso é um livro de suspense e que na próxima página que eu virar vou encontrar uma surpresa?!_ ele berrou, mas a mãe já estava a caminho da garagem, jogou-lhe um beijo e partiu.

Daniel suspirou e olhou o papel na sua mão.

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