27.3.07

Cap 16: É pressão até o fim

_Nossa, você é perfeita para esse papel! _Taieko subiu pela escada lateral do palco aos pulinhos e abraçou Angélica, que sorriu timidamente. Felipe e Anderson concordaram com um aceno de cabeça.

Angélica e Taieko desceram do palco e foram ao encontro do grupo. A moça olhou para Daniel na expectativa de ouvir a opinião dele, o autor da personagem que acabara de interpretar. Olhou nos olhos do rapaz em espera.

_Você está pronta para o sucesso? Para as câmeras, entrevistas, para que todo mundo saiba o que você fez? _ perguntou, projetando para o futuro a conseqüência de um possível êxito.
_Estou. _ ela respondeu. _ Você acha que está tão bom assim é?_ brincou para ver se arrancava alguma reação positiva dele.
_Eu pensei que a Catarina só existisse na minha cabeça, mas ela estava ali na minha frente há alguns minutos, impressionante. _ rendeu-se em elogios.
_Exagerado._ Angélica riu. _ Acho que teremos muita coisa para fazer, em pouco tempo.
_E Patrícia?_Taieko tinha que lembrar daquela parte e quebrar o clima de euforia?
_Bom... _ Daniel respirou fundo e encolheu os ombros. _ Não tem como ela recuperar o pé... Então, vamos ter que tocar isso com a Angélica mesmo...
_Vocês estão bem?_ Taieko perguntou, misturando ali a amizade e o profissionalismo.
_Não sei..._ Daniel olhou para o sapato, meteu as mãos nos bolsos. _ Melhor não pensar nisso...
_Você vai ter muita coisa para pensar agora, estará com a cabeça ocupada. _ Angélica lembrou-o._ Que tal começar revendo a alocação do teatro?_ sugeriu.
_Boa idéia! _ olhou para o relógio e bateu duas palmas._ Galera, vou correr para agitar isso, a tarde ensaiamos, pode ser? Duas horas.
_Tá, vai lá... _ Felipe deu uns tapinhas nas costas de Daniel.
_Nós temos que ver se todos os figurinos cabem em você._ Taieko falou olhando para as roupas penduradas atrás do palco.
_Claro._ Angélica segui-a e sentiu um frio na barriga com o que se deparou: um vestido curto vermelho decotado, perucas, saltos e diversos assessórios provocantes. Se alguém visse aquela peça significaria sua excomunhão.

“Você está pronta para o sucesso? Para as câmeras, entrevistas, para que todo mundo saiba o que você fez?”, a pergunta de Daniel ressoou mais uma vez em sua cabeça.

_Acho que está tudo certo, vocês têm o tamanho parecido...
_Angélica, escuta essa?!_ Felipe interrompeu a conversa das duas, que se viraram para dar a atenção que o rapaz pedia. Ele apertou o botão no aparelho de som e começou a tocar a música Adultério do Mr. Catra. _ Tara tatara tara tara tatara tara tara É! _ ele deu uma risada alta e começou a rebolar, se exibindo. _ Sabe esses dias que tu acorda de ressaca. Tua roupa tá cheia de lama e a cachorra tá na cama. É! É o dia que a orgia tomou conta de mim. Tan tan tan tan tan tan. Antes, durante e depois...É pressão até o fim!Tan tara ta tan ta._ Felipe abaixou o som. _ E aí, vai aprender a dançar com o papai aqui? _ riu.
Angélica sentiu que a ficha começava a cair. Aceitar aquilo era de fato se preparar para ser levada à fogueira da condenação moral. A música fazia parte de um trecho da peça em que Catarina conta em seu diário que achava um absurdo aquelas músicas de funk serem tocadas em festas de crianças, mas no fundo adorava o ritmo e tinha muita vontade de dançar.
_Depois a gente vê isso..._ Taieko fez pouco caso e voltou-se para as roupas de novo. _ Ele está se exibindo para mim. _ balançou a cabeça para os lados e menosprezou.
_Como assim?_ Angélica franziu a testa, enquanto Taeiko apertava o vestido na sua cintura medindo por cima da sua roupa.
_Felipe pediu para ficar comigo, nós ficamos e tal, mas não quero levar isso a diante... _ Taeiko explicava tudo sem qualquer emoção. _ Ele só quer curtição mesmo e eu to ligada em outro carinha...
_É? _ Angélica levantou as sobrancelhas sem saber muito o que dizer.
_E esse carinha sabe que o Anderson gosta de você?_ Angélica tomou a liberdade de alfinetar. Já fazia tempo que observava como Anderson ficava de cara fechada e triste, quando Felipe e Taieko desbravavam papos que não incluíam o rapaz. Agora que eles estariam envolvidos em um mesmo trabalho, seria interessante que estreitassem os laços de confiança.
_O Anderson? Tá viajando,né? _Taieko balançou o rosto para os lados.
_Então, eu estou vendo demais... Porque ele se incomoda com o fato de você e Felipe estarem sempre tão juntos...
_Angélica..._ Taieko olhou para os dois amigos que conversavam perto do aparelho de som a alguns metros, estavam concentrados o suficiente para não ouvir o assunto das duas. _ Não é de mim que ele gosta.
_Não? De quem então?_ Angélica estava confusa.
_Olha bem..._ Taieko indicou com a cabeça para o lado.
_Ãnh? Que tem? Que que tem aver o Felipe com o... _Angélica sentiu as palavras travarem na boca.
_Hãhãn..._ Taiko fez que sim com a cabeça e deu um grande sorriso. _ Exatamente isso que está pensando.
_Eles são gays?! _ ela sussurrou com uma careta de horror.
_É mais complicado que isso... _ Taieko parou de remexer nas roupas, colocou-as no cabide de volta e ficou de braços cruzados, contemplando os dois, junto com Angélica.
_O pai do Felipe é muito sério, um homem cheio de preconceitos, não admitiria nunca que o filho sonhasse em assumir sua verdadeira opção...
_E o Anderson?
_Ele é assumido sim, mas só para nós. Não sai por aí beijando na boca de qualquer cara. A sociedade ainda é muito preconceituosa. Mas eu sei que no fundo a paixão dele é o Felipe. Só que o Felipe é muito fraco, não assume isso nem para ele mesmo.
_Perai, então, quem te garante que ele gosta do Anderson também, ou sei lá, que ele é gay?_ Angélica tinha tantos preconceitos que para ela era tudo uma grande aberração.
_Shiii, isso é mais complexo do que você imagina..._ ela balançou a cabeça para os lados.

Angélica desejou que não tivesse sabido de nada daquilo e continuasse achando que Felipe e Anderson eram apenas amigos.

A cada passo que dava adiante, sentia que estava saindo do paraíso.

25.3.07

Cap 15: Dando vida a personagem

Angélica ficou algum tempo olhando o palco parada sozinha no meio do salão. Pelo tempo que telefonara, Felipe, Anderson e Taieko já estavam para chegar. Ela ergueu as páginas do script que tinha em mãos e checou se todas as frases estavam realmente em sua memória. Ela sabia que poderia falhar, já que o tempo é capaz de enferrujar um talento. Mas queria arriscar, tomar aquela decisão sozinha, independente da ordem de qualquer pessoa.

Angélica olhou o relógio no pulso marcando dez horas da manhã. Era hora de ligar para Daniel. Por fim sacou o celular do bolso e discou.

_Alô?_ ele atendeu o telefone do escritório e reconheceu a voz dela do outro lado. _ Onde você está? _ estranhou aquela ligação.
_Daniel, queria que você viesse aqui na sala de ensaios, pode ser? Tô te esperando.
_Tá, mas o que está acontecendo?_ ele não entendeu nada.
_Por favor, vem aqui? Está tudo bem, não se preocupe._ tranqüilizou-o.
Daniel levantou-se e caminhou para os fundos da casa intrigado. Mas antes que chegasse lá, o interfone tocou. Eram seus três amigos. O que eles queriam? Não vinham vê-lo desde a última reunião em que Daniel informara que a peça era inviável por falta da atriz principal.
_ Nós viemos ver a Angélica, ela ligou para a gente hoje de manhã bem cedo. _ Anderson foi o primeiro a dar uma explicação para a visita repentina deles.
_É?_ Daniel definitivamente estava perdido._ Ela também me ligou agora pouco, disse que era para eu encontrá-la na sala de ensaios...
_Ela também disse isso para a gente. _ Taieko contou.
_Vamos até lá então, galera?! Agora sou eu que estou curioso!
_’Bora!_ Anderson também se animou e eles seguiram pela lateral da casa até chegarem aos fundos. Deram de cara com a porta fechada e um aviso pregado nela dizia: “Entrem e sentem-se”.
Eles entreolharam-se e Taieko tomou a iniciativa de virar a maçaneta. Aparentemente estava tudo normal e nos seus devidos lugares, exceto pelas quatro cadeiras de frente para o palco. Felipe ainda gritou por Angélica e sua voz ecoou pelo grande salão. Daniel fez sinal com a mão para que parasse, não queria quebrar o clima de surpresa e expectativa.
_ O que significa isso? _ Felipe apontou para o palco vazio.
_Eu não sei, cara! To tão perdido quanto voc...
_Ah! Essa vida de mãe de família..._ Angélica surgiu por uma escada por trás do palco e sua voz silenciou o grupo, que a olhou atônito.
Ela vestia um roupão de banho e tinha os cabelos escondidos por uma toalha em forma de turbante.Daniel sentiu os pêlos dos braços arrepiarem.
Angélica sentou-se diante de um móvel voltado de frente para o palco e com um algodão fingia remover a maquiagem, olhando-se em um espelho invisível. Eles reconheceram que aquele era o terceiro ato da peça, o único que pedia a atuação apenas da atriz principal. Ela, então, estava assumindo aquela tarefa para mostrar para eles que era capaz de ajudá-los a seguir com a idéia? Essa era a pergunta que passava na cabeça de todos.

_Eu tive um dia pesadíssimo! _ Ela olhou para frente e parou de se demaquilar. _ Coloque as crianças fora da cama! _ levantou-se._ Dá o leite para o gato, põe o pão na mesa... _ andou de um lado a outro do palco, fazendo sua voz ficar ofegante. _ Banco, feira, veterinário, escola de novo._ Respirou fundo e apertou o peito com a mão._ Ontem eu estava corrigindo o dever de casa do Paulinho. Tinha uma pergunta assim: O que o seu pai faz? Ele trabalha o dia inteiro. O que sua mãe faz? _ ela fez uma ligeira pausa._ Minha mãe não faz nada, fica em casa o dia inteiro. _ O rosto de Angélica incorporou um semblante de ironia. _ Incrível!_ balançou a cabeça para os lados e arrancou um leve riso de Felipe. _ Todo dia é sempre igual. _ ela pegou o diário que estava na penteadeira e o abraçou. _ Daqui a pouco chega o Ronaldo arrotando o macarrão com coca-cola. _ Suspirou profundamente e caiu sentada em cima da cama que Daniel havia colocado ali, por sugestão sua, no último ensaio._ Sexo depois de dez anos de casada é assim..._ Angélica fez um ar de tédio absoluto. _ Igual aquela lojinha de conveniência. Não tem nada de diferente, mas às quatro da manhã está ali..._ Apontou para a cama.

Os quatro riram. Conheciam aquele texto como o pai-nosso, mas na interpretação de Angélica conseguia ganhar vida. Eles olharam para Daniel, como se ele fosse responsável por convencê-la a encarar aquele desafio. Tudo parecia um grande milagre para ele.

Angélica dominava o palco, parecia estar no próprio quarto, totalmente à vontade. Ao terminar o trecho que ela havia escolhido para mostrar-lhes, parou em pé, de frente para sua pequena platéia e sorriu, deixando a personagem sair de seu corpo.

Ela estava ansiosa para saber o que eles acharam.

23.3.07

Cap 14: Uma sensação de querer fazer uma coisa

"Enquanto eu estava no meio daquelas pessoas, pensei no poder tão forte capaz de acimentar todos os diferentes tipos em um só pensamento, uma só crença, um só lugar. Formavam juntos uma massa manipulável e feliz. Feliz por acreditar que tudo que seguiam era o certo, não havendo outros caminhos, nem salvação para aqueles que não participassem daquele seleto grupo. Respeitei a ingenuidade de cada um e procurei manter-me sério e com uma postura de imparcialidade a fim de preservar Angélica de qualquer constrangimento, pelo contrário, desejava que ela nem desse por minha presença ali. Seguia assim, todas as coordenadas de minha mãe. Ela me aconselhara antes de criticar Angélica, tentar entender o universo no qual ela estava inserida. Tudo que pude concluir era que aquela estrutura era mais forte do que qualquer movimento de força que eu pudesse fazer para abalá-la na mente de Angélica. Não havia jeito, essa batalha era completamente perdida. "

Daniel fechou o diário e ficou ali imóvel em sua cadeira. Não tinha muito em que se preocupar, já que Angélica conseguia praticamente catalogar todos os seus compromissos e deveres, não havendo um que não estivesse “dentro do orçamento” e “das medidas previstas”. Aqueles bordões já se tornaram quase uma pilhéria para ele. Tudo corria perfeitamente bem, novos alunos surgiam para as aulas de violão; a companhia de dança se preparava para uma apresentação na festa do bairro e as contas milacrosamente seguiam em dia. Só o grande vazio e tristeza era saber que sua peça morrera, antes mesmo de chegar ao palco. Como pudera mentir para seus amigos? A que ponto chegara? Por que não lhes dissera que não havia atriz nenhuma para substituir Patrícia? Sua esperança de que Angélica pudesse se encantar com o brilho e a glória de ser uma estrela era uma mera projeção da figura de Patrícia naquela intrigante mulher que habitava sua casa.

Ela era muito diferente. Não tinha o espírito adolescente de quem deseja aparecer a qualquer preço, não mede riscos e tem coragem para cometer as maiores loucuras. Tudo nela tinha um grau de prudência e racionalidade que a tornava incompatível com Daniel. Era nisso que ele refletia neste momento sentado sozinho, às dez e meia da noite, no escritório. Como, então aquela equação conseguia dar resultados positivos?

_Posso apagar a luz da sala ou você ainda vai voltar para lá?_ Angélica apareceu na porta, era rotina sua verificar se tudo estava em perfeita ordem, antes de dormir.
_Pode, claro.
_Tá..._ ela continuou em pé, com ar reticente de quem viera até ali por outro motivo. _ É... Você está muito ocupado agora?
_Não. Não _ Daniel recostou-se na cadeira e ficou se balançando levemente para os lados.
_Podemos conversar?_ ela entrou contidamente e parou diante da cadeira.
_Sente-se._ Daniel indicou o acento e ela se sentou. Demorou um pouco para achar as palavras. _ É... _ sorriu, olhou para baixo. _ É sobre ontem... Eu gostaria de conversar com você sobre...
_Sobre eu ter ido com vocês na igreja? _ Daniel tentou facilitar o diálogo.
_É... _ Angélica mexeu no cabelo, jogou-o para o lado. _ Eu queria que me dissesse o que passou pela sua cabeça, enquanto estava lá...
_Que eu diga?_ Daniel franziu a testa e pensou um pouco, aliás, pensou tanto que Angélica achou que não queria responder.
_ Deixa, deixa... Você deve estar cansado...
_ Eu acho que tudo que eu diga não vai mudar nada do que você crê. Porque para aqueles que não acreditam nem um argumento é suficiente. Mas para quem acredita, nem argumento é necessário..._ Daniel, enquanto falava fazia um desenho imaginário com o dedo no tampo da mesa.
_Eu não quero que mude o que eu penso, eu quero ouvir o que você acha.
_Por que isso é importante para você?_ Daniel olhou-a nos olhos, averiguando até onde poderia ir.
_Porque tem coisas que também me incomodam._ Angélica disse aquilo com uma voz para dentro, medrosa. _ Eu só queria ter alguém para conversar...
_Então, vem comigo. _ Daniel levantou-se e fez sinal para ela segui-lo.Ela olhou para os lados, franziu a testa e decidiu acatar as ordens. _ Anda, quero te mostrar uma coisa. _ Daniel sabia como ninguém teatralizar todas as situações, tornando a vida uma deliciosa cena de um contador de histórias.
Eles foram para o lado de fora da casa e chegaram na piscina. Angélica estava em seu auge da curiosidade, quando ele apontou para o alto. O que queria mostrar-lhe estava bem ali, acima de suas cabeças.
_Que tem as estrelas? _ Angélica olhou para o céu azul e limpo, com seus pontos luminosos emoldurando a lua.
_ São lindas né? _ Daniel com as mãos no bolso, olhou-a de lado. _ Muitas pessoas morreram por causa delas.
_ Ãnh?_ Angélica parecia confusa.

Daniel sentou-se em uma das espreguiçadeiras e depois se deitou. Angélica sentou em uma outra ao seu lado.

_ Um dia alguém disse que a Terra não era plana e os planetas não giravam ao redor dela e foi morto por isso. Como provar se não havia as espaçonaves, os satélites? Um dia algumas mulheres conhecedoras das ervas e da natureza começaram a curar e também foram mortas por isso. Todas essas pessoas ousaram contestar aquilo que estava sendo imposto. _ A voz de Daniel era pausada e envolvente. _ Existe de fato um Deus dentro das igrejas. Um Deus que salva, que é amor, paz e traz a fraternidade e a vida. Mas existe ali também o homem. E esses homens começam a guiar os outros homens conforme as leis que eles mesmos criaram. Esse Deus que pregam não é para todos, não é democrático, é para tão poucos. Só para os escolhidos.
_Não é verdade, eu discordo. _ Angélica começou a incomodar-se, mas não podia parar, afinal, não fora ela que incitara aquele diálogo?
_Ontem, enquanto estava lá com você e o Rique, ouvi que havia dois grupos. Aqueles que eram parte daquela comunidade e os que eram do mundo, ou seja, os que eram de fora. Para os que estão de fora não há salvação. Porque eles bebem, usam camisinha, transam antes do casamento, usam roupas curtas, ouvem a música que quiserem? O que incomodam não é bem o que as pessoas fazem, mas como elas tem o livre arbítrio de fazerem o que bem quiserem, sem seguir as ordens de um ditador. Isso é deixar a massa dispersa. Para evitar que isso aconteça as sociedades judaico-cristães impregnaram seus fiéis com o sentimento da culpa. Será que é coincidência as nações que foram criadas em cima do calvinismo e outras crenças que louvavam o dinheiro e o trabalho serem hoje em sua maioria de primeiro mundo? Será que é coincidência pura o fato do louvor a pobreza ter sustentado uma massa sempre disposta a dar tudo que tem para continuarem sempre no mesmo estrato social?
_Não posso chamar de coincidência ou não, mas também você não está considerando uma ordem enorme de outros fatores...
_Pode ser... _ Daniel deu de ombros, não estava nem um pouco preocupado em debater idéias, suas opiniões eram muito fortes e firmes.
_Já está comprovado que as religiões fazem bem, renovam a vida das pessoas, que...
_Angélica, eu não disse que não era bom._ Daniel consertou. _ Apenas não é totalmente certo o sistema de escravidão camuflado que existe. Olhe para você mesma! Deixou de fazer um monte de coisas, porque alguém te mandou? Eu te dei a chance de brilhar em uma grande peça e você mentiu para si mesma que não teve a menor vontade de tentar?
_Ah! Lá vem você com essa história?! _ Angélica não gostou daquele assunto vindo à tona.
_Tudo bem, esquece... _ Daniel continuou olhando as estrelas.
_Sua mãe nunca te levou a nenhuma igreja, não te deu nenhuma religião?
_Não, nunca me obrigou. Mas aprendi muito com uma pessoa, uma pessoa maravilhosa... _ Daniel sentou-se e pareceu que iria se levantar para entrar, mas não, sentou-se para ficar de frente para Angélica._ Foi a pessoa mais genial que eu já pude conhecer... Eu amava ela como minha mãe. Na verdade, ela foi para mim uma avó.
_Você fala no passado, ela já morreu?
_Já..._ Daniel massageou a palma das mãos, balançou levemente a cabeça para os lados e respirou fundo. _ Quando ela faleceu, eu lembro bem, eu cheguei da escola todo suado, tinha jogado a tarde inteira futebol, só queria comer o pão com ovos que ela fazia. Minha mãe estava na porta do quarto e chorava. Eu nunca tinha perdido ninguém. Mas ela era muito para mim. Muito mesmo. Se chamava Fátima. Morreu muito velha mesmo, mas morreu sorrindo. E parece que eu ainda posso entrar correndo, que ela vai estar na cozinha preparando a comida que eu gostava... _ Daniel sentiu que a voz ia embargar.

Ele olhou para Angélica e pensou na foto da menina que havia na estante da sala da casa da sua mãe. Fátima sempre que limpava os móveis, pegava a foto por alguns instantes e mergulhavam em um silêncio. Sua mãe lhe contara que Fátima cuidara de Angélica também, enquanto esta ainda era muito pequena e sua mãe Alice estava em coma. No período que o pai de Daniel ainda achava que Angélica era sua filha, Fátima também fez de tudo para preservar a menina de toda aquela confusão em que vivia aquela família. Talvez, vó Fatinha, como chamava, iria adorar ver a mulher que hoje é a garotinha da foto.

_ A gente estava falando sobre religiões, quando você se lembrou dessa mulher...

_Ah! Sim!_ Daniel retomou a origem do assunto. _ Ela me ensinou muito sobre as religiões. Era uma mulher extremamente sábia. Depois me interessei a ler livros, pesquisar sozinho e me interar das coisas. O conhecimento liberta, te abre a mente para outras visões de mundo._Bom, te trouxe para ver as estrelas e acabamos falando de tanta coisa... _ Daniel levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos._ sua posição favorita de recolhimento.

_Eu que ocupei seu tempo... _Angélica riu e levantou-se também.
_É... _ era a vez dele estar procurando as palavras. _ Sua mãe disse que você era uma grande atriz.
_Minha mãe? Só pode ser uma piada! Ela sempre falou que isso nunca me levaria a nada.
_Enfim, ela falou isso uma vez para minha mãe. _ Daniel reafirmou._Eu gostaria de te ver atuar. Só para ver mesmo. Um dia que se sentir a vontade, você não esquece tá?... _ Daniel sorriu e entrou.

Angélica olhou mais uma vez as estrelas e sentiu um frio na barriga, uma sensação de ter vontade de fazer uma coisa, mas ter medo.

18.3.07

Cap 13: Divisor de águas

Daniel saiu da casa de sua mãe com a cabeça martelando. Não queria retornar para a sua agora. Preferiu entrar no shopping, dar um volta, ficar sozinho. Na bilheteria viu o cartaz de um filme e decidiu assistir. Ocorreu-lhe que talvez precisasse abstrair tudo.

Patrícia já estava tão longe dele, magoadíssima por não poder estar na peça. Mas que peça? Agora que seus amigos também estavam com raiva dele e Angélica nem podia olhá-lo nos olhos depois de tudo que ele lhe dissera?

Ali, sentado naquela poltrona vermelha, da sala escura, ele não tinha responsabilidades, nem precisava dar respostas. Era só um jovem comum de jeans, em uma sessão vazia.

O filme não prometia nada, mas se encaixava perfeitamente com sua vida. Chamava-se “Letra e música”. Consistia na estória de um antigo astro pop que precisava compor uma música em uma semana. Ele encontra, então, uma mulher que a todo custo quer contratar como letrista, mas esta se renega. Em vários momentos Daniel se viu na tela e pensou que Angélica pudesse ser essa mulher. Deveria seguir os conselhos de sua mãe.

Ele assim que chegou em casa, encontrou na sala mãe e filho de mãos dadas, roupa impecável e passos de quem vão sair.

_Vão a igreja?_ perguntou. _Posso ir junto?_ se ofereceu antes de ouvir resposta para a primeira pergunta. _ Eu levo de carro.
_Oba!_ Rique pulou animado.
_Para quê?_ Angélica desconfiara daquela proposta, sabia muito bem o que ele pensava sobre suas crenças. De todo modo não poderia impedi-lo de ir.
_Rique, toma a chave e me espera lá fora, tá?_ ele se abaixou para falar com o garoto e deu um soquinho em seu ombro.
Agora à sós, colocou as mãos no bolso e olhou para baixo. Viu que Angélica calçava salto alto e usava um belo vestido longo florido. Perdeu-se no figurino e esqueceu o que iria lhe falar.
_Eu estou atrasada... E sei muito bem o que você pensa sobre...
_Eu vou ficar calado. Prometo.
_Daniel..._ ela riu, para tentar não perder o humor, nem a paciência._ Não precisa fazer isso como desculpa por ontem, não tem que ir...
_Eu tenho o direito de rever meus conceitos._ ele argumentou humildemente.
_..._ Ela coçou a testa, suspirou e o olhou nos olhos._Claro..._ Soltou as mãos ao longo do corpo e seguiu em direção a porta.
Ao chegarem de carro diante do prédio, pareciam uma família. Angélica adorou aquela sensação e não escondeu isso no sorriso que se abriu. A sensação de segurança era muito boa. Pensou em como Rique merecia que seu pai estivesse ao seu lado. Mas não era mais tempo de mágoas e nem flash back, porque a pregação iria começar.
Daniel ao lado de Angélica cumpria seu trato de ficar calado, no papel de mero ouvinte. Ele estava ali para entender melhor aquela mulher.
O homem polidamente vestido começou a falar sobre os pecadores e aqueles que eram do mundo. Em nenhum momento Daniel fez qualquer ar de deboche, soltou risinhos, ou balançou a cabeça para o lado, porque estava sobre a mira dos cantos dos olhos de Angélica.
Ele encarou aquilo como um laboratório, executando a prescrição de sua mãe.
_Você que é pai, que é mãe, não deixe seus filhos verem novela. É coisa do demônio. Você que é mãe, não deixe suas filhas ouvirem essas músicas imorais, porque depois ela vai aparecer grávida e você não sabe por quê.
Angélica começou a se sentir incomodada com o discurso, porque suspeitava que Daniel estivesse interiormente achando tudo uma grande estupidez e a julgando uma burra.
O homem continuou a descrever como deveria ser o comportamente daqueles que seriam salvos, separados e seletos para a glória final. Tudo terminou com uma belíssima música de um coral e a aparente família se dirigiu de volta ao carro.
Foi Angélica que quis romper o silêncio, quando chegaram em casa. Após colocar Rique para dormir, encontrou Daniel no escritório no lap top:
_Boa noite..._ fez um ar de despedida, mas Daniel fixou o olhar, entendendo que ela queria entrar e falar-lhe. _ Eu não entendi sua atitude hoje... Nem onde quer chegar...
_Eu critiquei ontem preconceituosamente o que você acredita. Achei que deveria me pôr no seu lugar para te entender melhor.
Por que ele precisava perder seu tempo entendendo sua empregada?, Angélica indagou-se.
_Não se preocupe, eu não vou discutir com você sobre nada que ouvi lá. Ao menos que um dia queira. _ ele deu de ombros e sorriu.
_... Tudo bem..._ Angélica abaixou os olhos, virou-se e saiu.
Daniel pensou se aquilo tudo de fato surtiria efeito. Mal ele sabia que era o divisor de águas de tudo que se sucederia.

16.3.07

Cap 12: Procurando respostas

Daniel não gostava de contar muito com a mãe dele, queria se sentir independente. Só que esse momento da sua vida precisava de uma participação especial dela. Foi, então, que a procurou para contar sobre a briga que tivera com Angélica na noite anterior.

_Você disse isso a ela? Você é um troglodita, hen? Não deu coice também não?!

Esse era o segundo motivo pelo qual Daniel não queria ter vindo: Daniela sua mãe conseguiria nas três primeiras palavras fazê-lo ainda mais culpado.

_Você meteu os pés pelas mãos, traiu a confiança dos seus amigos!_ Ela começou a apontar os erros. Mas como mãe bate e depois assopra, Daniela deu uma pausa e suspirou._ É..., meu filho, eu sei que te arrumei um problema...

_Não era para ser um problema, mas uma solução. Não fosse pelo fato dela ser uma porta! Mãe, da onde ela tirou esse comportamento medieval? Nós evoluímos! _ Daniel estava desnorteado.

_Daniel, ela foi incluída dentro de um grupo social que a aceitou e lhe ensinou valores seculares. Quando ela foi expulsa desse mesmo grupo, sentiu a necessidade de perseguir ainda mais os ensinamentos... Isso a fazia se sentir correta, no caminho certo...Tudo que existia na sua vida ela deixou para trás a fim de seguir esses preceitos.

_Mas daí abandonar o que ela gosta?_ nada daquilo entrava na cabeça dele, mesmo que nas palavras de sua mãe soassem muito bonito e bem explicado.

_Querido, você está mexendo em um vespeiro. Ela tem o teatro guardado dentro dela...

_Eu também tenho Deus dentro de mim e nem por isso me auto destruo sem perceber. Eu sei o que eu quero, eu sei o que eu devo fazer...

_Daniel! Daniel!_ ela balançou as mãos no ar para ele se calar._ Você viveu um mundo, um contexto, uma realidade. Não adianta comparar.

_Mãe, o que é que eu faço?!_ Daniel revelou o verdadeiro sentido da visita: queria uma solução para o problema.

_Tudo que você vai parecer uma afronta. Então, você vai ter que entrar no mundo dela. Se quer ela de volta no seu...

_E como faço isso?

Daniela olhou-o ressabiada se ele iriaa topar sua idéia. Imaginou que não.

Eliane

15.3.07

Cap 11: Guerra de nervos

Quando Angélica chegou no local dos ensaios da peça, Daniel não se encontrava. Pensou que estava atrasada, por causa do problema de um ventilador da sala de violão que teve que trocar.

_Você estão indo embora?_ Angélica perguntou sem entender porque eles arrumavam a mochila._ E Daniel, onde está?

_Não tem peça mais._Anderson explicou.

_Como assim? Cancelaram o ensaio?

_Não tem peça, nem para apresentação, nem para ensaio, nem para..._ Felipe estava muito alterado.

_ Daniel disse que não tinha condições de continuarmos sem a atriz principal..._ Taieko tomou a palavra, estava com um semblante de desapontamento.

_ Mas ele me disse que havia alguém muito capacitada para isso... Onde está a tal pessoa?

_Pergunte a ele! _ Felipe respondeu com raiva e jogou a mochila nas costas. _ Só é uma pena que eu tenha perdido meu tempo e tenham me feito de otário!

_O que está acontecendo, gente? _ Angélica parecia desnorteada. Foi deixada falando sozinha, enquanto os três amigos partiam cabisbaixos e desapontados.

Foi a vez de Angélica se enfurecer. Ela tomava conta de tudo ali e agora não estava sob o seu controle aquela situação. Mas quem ia escutar não eram eles.

_Rique, você viu o Daniel?_ Angélica perguntou para o menino sentado na sala.

_Ele está no quarto.

_Hum, obrigada, meu filhote!

Angélica deu três pancadinhas na porta de madeira, não estava nem um pouco preocupada em ser passada como inconveniente.

_Entra..._ Daniel autorizou depois que ela se identificou.
_Daniel, os seus amigos foram embora dizendo que não ia ter mais peça! _ Angélica colocou uma mão na cintura e com a outra ficou gesticulando. Parecia que só ela estava preocupada com a situação toda.
_É, não vai ter mais..._ ele respondeu olhando por cima do livro que estava lendo.
_E você me fala isso com essa calma? Deitado aí nessa cama? Cadê aquela história do seu sonho...?
_Não fazemos nossos sonhos sozinhos. _ ele respondeu.
_Onde está a tal atriz.
_... _ Daniel olhou-a fixamente, mas nada respondeu.
_O Felipe estava uma pilha! Por que ele deveria se sentir enganado?
_Porque..._ Daniel sentou-se e colocou os pés no chão. Falar as verdades era tão difícil, quanto manter a mentira:_... Eu contei para eles que nunca houve uma outra pessoa.
_Quê?_ Angélica inclinou o corpo para frente e fez uma careta de espanto.
_Eu tinha planos que você nos ajudasse, mas vi que nada te venceria, você está resoluta de que não pode, por que não é capaz.
_Eu não disse que não era capaz._ consertou ela.
_Bom, para mim você largou porque não era realmente para isso..._provocou-a.
_Também não foi por isso._ Angélica começou a ficar nervosa, mas tentou se controlar.
_Eu vou te contar uma historinha. _ Daniel levantou-se e foi até bem perto de Angélica, para que ficassem olho no olho. _ Havia uma garotinha que cresceu achando que ia ser bailarina. Ai um dia em uma prova, ela foi excluída. O jurado disse que ela era ruim. Muitos anos depois ela assistia a um balé e encontrou esse mesmo homem. E lhe disse que largou o balé e seguiu a sua opinião. Ele respondeu: “É você realmente nunca nasceu para o balé, porque eu falava isso para todo mundo, mas você não devia ter acreditado no que as pessoas dizem”.
_E daí?_ Angélica cruzou os braços e o olhou desafiante.
_E daí que você ouve demais tudo que te falam. Olha para você! Você não é nada. Não tem a menor personalidade. Você é uma latinha de sardinha dessas de supermercado que você pode pegar qualquer uma na prateleira, porque todas são iguais. O seu padrão certinho, o seu padrão boa mulher é só sua carapaça, onde você mora e se esconde. Porque você não sabe mais o que gosta, o que deseja, o que acha certo. Você é aquilo que outras pessoas projetam para você...
_Cala essa boca..._ Angélica o empurrou contra a cama e partiu para cima dele._ Seu idiotazinho, quem você pensa que é para falar assim comigo?!_ berrou e seu coque se desfez.
_Me bate vai?_ Daniel pediu com os olhos brilhando. Conseguiu ficar mais uma vez de pé.
_Eu não mereço ouvir nada disso! Você não sabe tudo que eu passei...
_Muitas coisas você passou porque você mesma deixou! _ Daniel explodiu.
_Cala a boca!_ Angélica virou a mão na cara dele de fazer um estalo.
Daniel foi para cima e a segurou pelos braços e a colocou contra a parede. Gotas de suor desciam agora pelo seu rosto.
_Não me bate, por favor... _ Os olhos verdes de Angélica o remeteram ao bebê da foto. Seu rosto ganhou contornos de terror que o levou por alguns segundos de volta ao sofá da casa de sua mãe.
Segundo Daniela lhe contara, Angélica fora uma líder estudantil muito forte, briguenta e revolucionária. Bem nessa fase rebelde freqüentou um curso de teatro, onde encontrou aquilo que mais gostava de fazer. Tudo mudou, quando ela conheceu o pai do seu filho. Ele era um homem muito ortodoxo com suas crenças religiosas e em pouco tempo conseguiu fazê-la mudar completamente todo seu estilo de vida, inclusive largar o teatro, mudar suas roupas e seus hábitos. Só que esse homem de terno e gravata, após saber que ela engravidara dele, rejeitou-a completamente e a difamou para toda a comunidade religiosa da qual ela participava. Angélica, viveu períodos de isolamento e muita tristeza. Sua mãe se mudou para uma outra cidade a fim de ajudar a filha a sair daquela situação. Mas havia um ópio do qual ela nunca conseguira se libertar: a ortodoxia religiosa. Deixara de ver novelas, de ouvir músicas da rádio, de ir a bailes, toda sua vida era seguir aquilo que ensinavam a ela. Em um ato desesperado sua mãe ligou para Daniela e pedira que ela arrumasse um emprego para Angélica no Rio e a fizesse sair daquelas amarras e voltasse a ser quem era antes. Um grande bônus nisso tudo é que Angélica conseguira se formar, por isso poderia se sustentar. Apesar dos anos, e de todo o passado, a mãe de Daniel soube ser solidária com a irmã e encarou o desafio de tentar salvar Angélica...
_Por favor, não faz nada comigo..._ Angélica começou a chorar e Daniel caiu de volta na realidade e desconfiou que ela estava projetando nele a imagem daquele homem que remexera com sua vida.
_Eu nunca te faria nenhum mal... Psiu... Olha para mim?!_ Daniel segurou seu rosto carinhosamente. _ Desculpe, desculpe. Esquece tudo que eu falei.
_Como quer que eu esqueça?_ Angélica saiu e trancou-se no seu quarto.

14.3.07

Cap 10: O enigma da menina

“Eu podia ter puxado pelo cabelo e mandado ela dizer quem achava que era para sair sem me dar satisfações. Tudo bem, era sua vida, mas eu tinha o direito de saber. Tá, eu não tinha, mas era o mínimo, já que ela está aqui na minha casa. Os acontecimentos tomaram um rumo tal que nem mesmo sei como os fatos se desenrolaram naturalmente e hoje me enxergo absurdamente dependente dessa moça. Não duvido se amanhã eu vou ter que ligar do meu celular para o telefone do escritório e perguntar: “Angélica, onde está minha escova de dentes?”. Em um segundo ela é capaz de responder: “Na porta de baixo do armário, comprei uma nova”. Ela certamente não vai esquecer de esclarecer “Está tudo dentro do orçamento”.

Mas não era preciso ouvir mais do que eu chegara a saber essa tarde, na casa de minha mãe, onde já entrei com o pé atrás de desconfiança. Pedi que ela pulasse a parte em que achava que iria me enrolar e contasse logo a realidade. Só que eu não estava nem um pouco preparado para o que viria. Minha mãe foi até a estante da sala e pegou uma foto que sempre ficara no mesmo lugar. Era de um bebê do qual meus pais nunca quiseram me explicar, mas que sempre me assombrou. Estava morto, era alguém querido que sumira, ou a pessoa não se sabe onde foi parar? Foto sem legenda para mim é um arrepio.

Ela perguntou se eu estava vendo aquela criança. Como não, se fora aquilo que eu passei toda minha vida olhando para ver se decifrava o enigma da menina? Minha mãe Daniela me contou que fizera silêncio a pedido de meu pai. Fiquei sabendo, então, que meu pai tivera casado com uma mulher chamada Alice, que o traiu com seu melhor amigo. Eles se casaram e levaram consigo a criança que meu pai achara que era sua filha. Meu pai descobriu que a menina era, na verdade, filha de seu amigo. Nunca mais ele soube notícias deles. O que não se podia dizer o mesmo de minha mãe. Eis ai a parte que me trouxe mais assombro: a tal mulher era irmã de minha mãe. Conforme a história se desenrolava, aquela criança tomava vida na foto e na minha imaginação. Segundo minha mãe, meu pai era muitíssimo apegado a menina e sempre carregou essa dor. Seu orgulho não permitiu que perdoasse o amigo, nem que pedisse para ver a criança outra vez. Por isso, meu pai deixava em cima da estante da sala a imagem que ainda o fazia feliz. Aquele bebê sorrindo, de bochechas coradas ainda era no fundo da sua alma sua filha.

De repente, meu cérebro conectou as histórias e tudo virou uma grande de teia de aranha. Minha mãe respondeu o que eu temia: “Sim, a Angélica que você conhece é a filha da minha irmã e sua prima. Mas ela não sabe disso, porque a mãe dela não lhe contou nada sobre o passado com seu pai. Nem mesmo ela sabe que sou a tia. Para todos os efeitos sou só a amiga da mãe dela que quer ajudá-la a se estabelecer aqui.”

Eu estava boquiaberto e perguntei para minha mãe se havia mais coisas que eu precisava saber. Ela respirou fundo. Eram muitas verdades de uma única vez. Abrir tantos baús cansava. Mas ela estava dispostas a abrir o jogo... E o que me contou depois sobre a vida de Angélica foi a parte que mais mexeu comigo."

Daniel sentiu que o sono não permitia que seus olhos ficassem abertos mais e deixou o diário em baixo do travesseiro, estava cansado demais para guardá-lo. Adormeceu.

13.3.07

Cap 9: Zona de perigo

_ “Eu nem sei porque estou escrevendo aqui. É como se eu estivesse compactuando com isso tudo, sinto medo de estar fazendo algo errado. Esse medo me persegue como uma culpa de 50 quilos de chumbo nas costas, que me impede de ser feliz por completo. Estar nessa casa é um paraíso, tenho agora um lugar para morar e perspectivas para meu filho. Mas ela também é um inferno, onde todas as tentações me estão à prova, mas eu resisto.

Essa peça é um nojo. Como podem querer falar de tanta promiscuidade? Eles estão propagando a mulher da vida! E ainda por cima fazem tudo mal feito. Não que eu quisesse ser parte dela, mas está tudo errado, as posições dos personagens no palco, o figurino, o cenário então? O Daniel pode entender muito de ter uma casa de cursos de artes, mas de fazer teatro ainda é fraquinho...

E que homem de me mover as entranhas mais adormecidas?! Ele merecia ser chicoteado cada vez que me fizesse transpirar por dentro da roupa, quando vem falar muito perto do meu pescoço. Tem vezes que só um banho frio para me livrar de todos os pensamentos pecaminosos. Essa carne ainda me fará cair outra vez no precipício. Não vou, não deixo!

Ele não ajuda! Veja que hoje ele trouxe aquela barata cascuda da Patrícia para cá e explicou a ela que não poderia atuar mais na peça. Eu não posso desejar o mal a ninguém, mas quando ela perguntou se era por isso (esse “isso”, eu) que ele a trocaria, tive vontade de dar as opções a ela entre eu vomitar na boca dela ou atirá-la escada a baixo de cadeira de rodas. Imagina ela rolando na escada e arrebentando todo o resto do seu corpo? Senti um prazer mórbido e delicioso de ver aquela carinha feia ser excluída. Ainda falei com desdém que não queria o papel e esnobei. Não quero mesmo, sou outra mulher, aquele tempo passou”.

Angélica fechou o diário e guardou na gaveta da pequena cômoda que havia no quarto. Pegou a chave e escondeu debaixo do colchão. Sentada na cama, suspirou e viu que Rique dormia um sono pesado. Beijou-lhe a cabeça e acariciou-lhe os cabelos loiros. Ela, porém, não tinha o mesmo sono, infelizmente. Restou-lhe ver se estava tudo certo pela casa.

A cozinha toda arrumada, conforme pedira a nova diarista. Luzes apagadas, cães no portão.

_Ainda aí? _ a voz de Daniel partiu do outro lado da sala. Angélica largou a cortina que segurava com as pontas dos dedos e sorriu.

_Olha quem fala?_ cruzou os braços, em posição defensiva.

_Eu tenho que te elogiar..._ Daniel que vinha do escritório, sentou-se no sofá e olhou com surpresa os papéis que tinha nas mãos.

_E por que seria?_ Angélica leu dinamicamente o conteúdo da folha, enquanto permanecia de pé em sua frente. Descobriu que ele se referia ao relatório de todas as providências que tomara.

_Você organizou a ficha dos alunos no computador, a contabilidade dos pagamentos... E, putz, adorei suas sugestões de fazermos propagandas daqui em panfletos e tudo mais..._ Daniel continuou discorrendo sobre os toques que Angélica lhe dera com respeito a fazer consertos e compras de materiais e eletrodomésticos para a casa de cultura.

_E tudo está dentro do orçamento._ Ela garantiu-lhe.

_ Quando você terminou a faculdade?_ Daniel pareceu curioso sobre a origem daquele senso prático e administrador.

_Faz pouco tempo, um ano. Nem acredito que consegui terminar._ Ela sentou-se ao seu lado, mantendo certa distância.

_Deve ter sido difícil com um filho pequeno...

_Oh! E foi..._ ela riu e sentiu-se vitoriosa de ter chegado até ali.

_Onde está o pai de Rique?_ Daniel perguntou, sempre com sua cortante espontaneidade.

_Eu não gostaria de falar disso com você, se não se importa._ Angélica negou-se a responder. Lembrar de Ismael era trazer a tona a parte de derrota de sua vida.

_Então, falemos da peça. O que está achando dela?_ mudou de assunto, sem perder o entusiasmo.

_Boa... Muito boa._ Angélica foi vaga.

_Tão ruim assim?_ ele franziu a testa e fez uma careta que a provocou risos.

_O que quer que eu diga?_ Angélica encolheu os ombros.

_Eu gosto de mudanças. De ouvir idéias novas e melhorar. Por isso gostei tanto da suas sugestões..._ olhou para os papéis que deixou na mesa de centro.

_Ah! Eu mudaria algumas coisas... Por exemplo, o cenário...

_O cenário?_ ele repetiu pausadamente._ Ãnh, prossiga.

_É. Você está falando de intimidade e intimidade é o quarto. Com uma cama, um guarda-roupa e uma penteadeira antiga com uma cadeira na frente. Assim, haveria uma formação triangular. Ora ela estaria em um vértice, ora noutro...

_Hum... Mas o quê?_ Daniel não queria fechar a brecha da porta que Angélica abrira na relação de diálogo dos dois com suas opiniões.

_ Naquela parte em que ela gostaria de dançar aquelas músicas como a amiga, ela deveria dançar, senão nem parece que ela tem vontade. Ela precisa fazer as cenas do diário. Está muito separado entre a hora que ela é a mulher certinha e a mulher que lê o diário. Isso choca pouco.

_Entendi..._ Daniel viu o brilho se acender no rosto de Angélica e conteve qualquer reflexo emotivo.
_E a luz. Onde está o vermelho? Vermelho é a cor que lembra a prostituição, poderia cair um foco desse sobre a cama...

_Você quer a direção da peça?

_Não, não me interprete mal..._ Angélica balançou as mãos no ar._ Desculpe...

_Tudo bem, não me ofendeu. Eu estava brincando..._ Daniel sorriu, estava um pouco chocado de ver todas suas idéias contestadas e ainda por cima concordar que as de Angélica eram geniais.

_O que te impede de atuar?_ Daniel perguntou em voz baixa olhando-a nos olhos e com uma certa tristeza na voz.

_Eu? Não, eu não interpretaria esse papel, eu mudei a minha vida, agora eu busco fazer só as coisas certas, sérias, sou outra mulher e quero que respeite isso...

_Você sempre soube que o teatro é a mentira menos falsa da vida... No palco você é um papel, só isso. As pessoas da platéia é que tomam para si as comparações com a própria vida...

_Por que disse que eu “sempre soube”?_ Angélica interrompe-o.

_Porque eu sei que você foi uma grande atriz, que amava o teatro. _ Daniel teve que confessar e romper a barreira entre os dois.

_ Do que está falando?_ Angélica riu e tentou disfarçar.

_ Eu conversei com a minha mãe. Você tem que entender que na minha posição eu precisava saber quem você realmente era, antes de te trazer para a minha casa e te entregar praticamente o rumo da minha vida...

_Você andou me investigando?_ fez uma careta de horror.

_Bom, você está encarando isso da pior maneira. Apenas a minha mãe me contou que você era filha de uma amiga de quem tinha muito carinho e que sempre soube notícias suas durante muito tempo e...

_O que ela sabe sobre mim?

_O que todos sabiam... O que sua mãe contava e...

_Não acredito..._ Angélica olhou para o alto para conter as lágrimas, levantou-se e pediu licença. Pensava que poderia guardar só para si o que se passara e sua mãe fazia questão de pegar um megafone e contar para todo mundo?

_Angélica..._ Daniel levantou-se e caminhou atrás dela, até que conseguiu segurar seu braço. _ Está tudo bem... Não tem por que se envergonhar... Você chegou aqui e venceu, e lutou e tudo passou..._ tomou fôlego.

_Eu sei disso, não precisa me lembrar._ Angélica puxou o braço e não deixou de ser arrogante, quando partiu para o quarto sem dar mais brecha para Daniel.

Nervosamente tentou reabrir a gaveta. Impunhou a caneta sobre o diário e escreveu:

_Não confiar em ninguém. _ envolveu o nome de Daniel pelo meio do texto e puxou uma seta, debaixo da qual escreveu. _ Perigo. Perto demais.

Eliane

9.3.07

Cap 8: O mundo dos loucos

_ O que ele está fazendo ali?_ Angélica perguntou a Anderson, assim que entrou no grande salão, onde eles ensaiavam. Encontrou o rapaz sentado na poltrona lendo os scripts da peça.
_Ele?_ Anderson olhou para Daniel no fundo do palco, sozinho em uma cadeira.
_Ainda não foi descoberto muito sobre o mundo dos loucos ainda._ fez pouco caso e continuou a fixar sua atenção no papel.
_Eu tinha que falar com ele sobre essas contas aqui para pagar... Será que vou interromper alguma coisa?_ pediu o conselho.
_Sinceramente? Acho melhor vir depois, quando Daniel fica assim é bom nem chegar perto.
_Tudo bem..._ Angélica suspirou olhando para os boletos de pagamento. Decidiu retornar para o escritório. Estava terminando de digitalizar o cadastro dos alunos das outras aulas e ainda precisava fazer contabilizar os pagamentos.
Foi em meio aos papéis, calculadora e muitas anotações, que Daniel a encontrou duas horas depois. Sentou-se na cadeira e ficou olhando-a trabalhar.
_Eu tenho umas coisas que preciso que veja..._ Angélica separou algumas folhas.
_Patrícia não vai se recuperar a tempo. Vai precisar operar..._ Daniel anunciou e aquilo se tornou o mais importante naquele instante. Angélica entendeu agora seu momento de reflexão no palco.
_Lamento. E o que vai fazer?_ perguntou.
_Já sei quem vai substituí-la. Está tudo certo.
_Já?_ Angélica ao mesmo tempo que ficou surpresa, sentiu um alívio por ele ter desistido da idéia de contar com ela para o papel da atriz principal.
_Mas enquanto ela não chega, eu não posso parar o trabalho com os outros, preciso decorar o texto, arrumar as posições no palco... Por isso, eu vou aceitar a sua ajuda para memorizar as falas. Você fica conferindo no papel se a gente está passando tudo direito. Pode ser?
_Pode, claro. Vai dar tudo certo._ Angélica sorriu e se prontificou a auxiliá-los.
_Então, ótimo. Você cuida de tudo aqui de manhã e na parte da tarde a gente ensaia. Você poderia ser minha assistente.
_Com certeza!_ ela gostou da idéia, quanto mais Daniel precisasse dela, mais garantido estaria seu emprego e o sustento de Rique, que já começara a estudar.

...

Taieko, Felipe e Anderson já estavam no palco, quando Daniel chegou com Angélica. Ele explicou qual seria a função dela nos ensaios e todos concordaram plenamente com um consentimento de cabeça.
_Ela também vai ganhar um diário?_ Anderson riu.
_Do que ele está falando...?_ Angélica perguntou para Daniel.
_Ah! Depois eu te falo..._ Daniel fez pouco caso. _ Imprimi um roteiro para você. Sublinha as falas da Catarina com essa caneta aqui. _ Ele pediu.
_Tudo bem..._ Angélica subiu pela escada lateral do palco e sentou-se em uma cadeira que havia no centro.
Enquanto os outros combinavam baixinho onde ficariam em cada ato, ela se sentiu sozinha, voltando ao passado. Ouviu palmas, muitas palmas. Balançou a cabeça para o lado, não iria lembrar de nada daquilo mais. Precisava sublinhar, essa era sua tarefa.

O primeiro dia foi tranqüilo, apenas repassaram as falas e cuidaram de alguns detalhes. Após todos se despedirem, restou Angélica e Daniel.

_Quero te dar uma coisa..._ ele pulou do palco e foi até um armário de duas portas que ficava ao lado da mesa com o aparelho de som.
_Me deixou curiosa._ Angélica desceu pela escada lateral e foi ao seu encontro.
_No dia da estréia, daremos de brinde para os convidados._ Daniel retirou do saco um pequeno caderno de capa dura onde havia um adesivo com a inscrição “Diário de uma mulher de família”._ Todos da peça temos o nosso. Isso ajuda a entrar melhor o mundo da personagem principal. É o que chamamos de um laboratório.
_Hum, sim. Bonito._ ela elogiou.
_Eu queria que você fizesse as anotações que eu falar. Sobre marcações, figurinos e todos os detalhes.
_Aqui no diário?_ Angélica tentava descobrir o sentindo de ter ganho aquele caderno, afinal de contas, ela não era atriz e, por tanto, não precisava do que ele estava chamando de “laboratório”.
_Não. Isso você vai anotar em outro lugar. Procure um caderno no escritório. Esse aqui é para você escrever o que quiser. Eu não disse o que você viver, como um diário comum, mas o que quiser, as fantasias, as imaginações, as mentiras...
_Eu não minto._ ela corrigiu._ Eu sou uma mulher da igreja._ lembrou-o._ Eu busco a santidade.
_E o que é verdade?_ Daniel perguntou.
_..._ Angélica ficou sem saber o que responder por um tempo. _ É o que eu acredito.
_ E quem te ensinou o que você acredita?
_O que importa é que eu acredito e ponto.
_Claro, escreva isso, então, mesmo que seja sua primeira mentira._ Piscou o olho e abaixou-se para colocar suas coisas dentro da mochila.
Ela franziu a testa e fez uma cara de interrogação. Achou que Anderson estava certo: Daniel era um louco. Mas não importava, ele pagava seu salário.

Eliane

6.3.07

Cap 7: Diário de uma mulher de família

_A peça conta...
_Uma mulher...

Taieko e Felipe falaram ao mesmo tempo e Angélica riu.

_Daniel, é melhor você contar. Foi você quem escreveu. _ Anderson deu um tapinha nas costas do amigo e sentou-se formando um círculo.
_Ah! Você quem escreveu? Nossa, agora estou curiosíssima! _ Angélica empolgou-se.
_Foi._ ele sorriu timidamente e resumiu: _ O nome da peça é “Diário de uma mulher de família”. É uma comédia de costumes. Uma mulher que aparentemente é toda certinha, inventa mil histórias e escreve no diário. Tudo mentira, claro. Mas são desejos reprimidos.
_Que tipo de histórias?_ Angélica estava realmente interessada.
_ A Taieko interpreta a amiga da Catarina. O Anderson é o marido certinho e chato. O Felipe é o filho e eu sou o cara com quem ela tem todos os sonhos.
_Ah! Entendi porque você escreveu..._ Angélica riu e os outros três a seguiram em uma grande gargalhada.
_Você escreveu a peça pensando na sua namorada?_ ela tocou no ponto. _ Será difícil substituí-la.
_Não! Eu tinha uma mulher imaginária na minha cabeça. Uma que fosse realmente certinha, tivesse todos os trejeitos... _ Daniel contou._ A Patrícia, claro, interpreta muito bem a parte desinibida dela... Acho difícil encontrar alguém que faça ambos os lados da moeda. Tem que ter muita naturalidade.

O celular de Daniel tocou e ele se afastou do grupo, procurou a janela. Era sua mãe retornando o telefonema que havia feito para ela de manhã.

_ Que foi, filhote?_ ela sempre com seu ar jovial, mas Daniel não estava para brincadeira.
_Mãe, que mulher é essa? Da onde ela saiu?
_Eu já disse. Por quê? Achou que não vai precisar dela?
_Vou._ ele teve que concordar que Angélica caíra como uma luva._ Mas ela veio com filho e tudo... Mãe, isso está muito mal explicado.
_O que quer mais que eu diga?_ Daniela sabia que não poderia esconder muito tempo do filho, ele era esperto demais. Só que prometera guardar aquele segredo.
_O que eu faço com ela? _ Daniel não costumava pedir opinião, mas não sabia como agir.
_Ora, deixa ela dormir no quarto de empregadas com o filho. E se entrega a sua peça de corpo e alma. Ou prefere que eu vá para aí te...
_Não! Eu me entendo com ela!_ cortou. Tudo que menos precisava era sua mãe paparicando-o para cima e para baixo.

Os dias se passaram e todas as pessoas que Daniel tinha em mente não se encaixaram no papel que ele precisava a todo custo preencher. Muito pertubado com isso, atravessou a madrugada sentando no sofá, com os próprios pensamentos. Como o reflexo da luz estava iluminando o chão da cozinha, Angélica foi averiguar se alguma lâmpada estava acesa indevidamente. Tinha apenas ido beber água, a noite estava absurdamente quente.

_Eu estou aqui._ Daniel levantou a mão e sorriu cansado. Atirou os papéis em cima da mesa de centro.

_Desculpe. Está sem sono?
_Sabe quando seus problemas não te deixam dormir?!
_Sei. Oh! Se sei..._ ela caminhou descalça e sentou ao seu lado, apanhou as folhas dos scripts.
_Estava tudo tão certo! Tão perfeito. E agora? Como vou pagar tudo isso, como vou...
_Hei! Por que está cantando derrota?_ Angélica tocou em seu braço e fez com que parasse de falar. _ Ainda está em tempo.
_Em tempo? Você não sabe como é isso?!Como funciona. To queimado, entendeu bem? Queimado, ferrado, fudido. Tudo no particípio! _ Daniel levantou-se explodindo.
_Hei! Vai dar tudo certo. Eu posso te ajudar a passar o texto. Você vai interpretando e eu vou conferindo... Pelo menos nas peças da escola era assim._ ela se propôs timidamente.

Daniel olhou-a complacente. Sorriu, percebendo que não devia falar daquela maneira despejando tudo em cima dela, não tinha culpa de ter tido um grande erro no percurso da sua peça.

_Você vai acabar espairecendo a cabeça..._ ela tomou o papel, realmente levando aquilo à sério.
_Não quero atrapalhar seu sono.
_Com esse calor?_ Angélica riu.
_Ora, tira a roupa e cai na piscina. Ninguém vai ver, prometo.
_Não!_ Angélica encolheu-se e abraçou-se, puxando as pontas da blusa do pijama, como se entrasse de volta na ostra. _ Eu não faço isso. Eu sou uma mulher séria... _ levantou-se. _ É melhor eu deixá-lo em paz.
_Angélica!_ Ele correu atrás dela e a puxou pelo braço. Seus olhos brilhavam como pirata que achou o tesouro perdido._ Faz isso de novo?
_Isso o quê?_ ela sorriu nervosa.
_Exatamente isso! Você consegue repetir o que fez? Era você! _ ele conteve-se para não gritar.
_ Eu quem, o quê?_ Angélica fez uma careta.
_ Era você na minha cabeça quando escrevi a peça.
_Não, não, eu não faço isso. Não é certo... _ ela esquivou-se e puxou os braços. _ Eu não posso interpretar esse papel. Eu não sei...
_Não sabe ou não quer? Eu vou te pagar por isso e...
_Não! Daniel, eu sou uma mulher séria, não vou ficar fazendo essas coisas aí.
_Hei! Isso é profissional. Isso é uma interpretação, como bem disse. Não será você.
_Por favor, não confunda. Eu sou só sua empregada e esquece isso... _ Ela fugiu para o quarto em passos miúdos.

Daniel sorriu, mordeu a ponta do dedo e sentiu que nem tudo estava perdido. Ele só não sabia que convencê-la seria a tarefa mais difícil da sua vida.

5.3.07

Cap 6: Perdemos a atriz principal

_ Essa é a nova administradora. Angélica, essa é minha namorada Patrícia. _ Daniel apresentou as duas amigavelmente, tentando transparecer que aquilo ali era um estrito contrato profissional, antes que Patrícia começasse sua crise de ciúme.

_Eu posso servir alguma coisa, te ajudar? _ Angélica perguntou solicita.

_Ah! Você vai ser empregada também? _ Patrícia olhou-a de baixo a cima.

_Eu vou fazer o que for preciso. _ Angélica sorriu e seus olhos procuraram os de Daniel para encontra apoio.

_Será uma semana de adaptação. _ complementou ele. _ Alguém me ligou? _ Perguntou e sentiu um gostinho maravilhoso de poder contar com alguém que fizesse todo o trabalho chato para ele.

_Ligou. Eu deixei todos os recados anotados em cima da sua mesa. Também chegaram o Felipe, o Anderson e a... Me esqueci o nome da japonesa.

_Taieko?_ sorriu._ Eles são da minha companhia de teatro. Vou te mostrar as instalações da casa, que nem tive tempo de apresentar. _ Ele levantou-se e Patrícia segurou seu braço.

_ Onde você vai? Eu não posso ficar aqui sozinha!

_ Aqui tem televisão na sala, mas se quiser ficar no quarto descansando...

_Hunf..._ ela cruzou os braços. _ Tudo bem, eu fico aqui vendo tv.

_ Eu já liguei para sua mãe, ela virá buscá-la para você ficar na casa dela. _ informou Daniel.

_Quê? Você está me expulsando daqui?! Sua empregada pode me ajudar...

_Patrícia?!_ Daniel colocou as mãos na cintura. _A Angélica não será a faxineira, nem a babá. _ Deixou as coisas bem claras. _ A sua mãe não trabalha e tenho certeza que poderá te oferecer muito mais carinho e amor. _ A partir de hoje eu tenho que me dedicar integralmente aos ensaios da peça.

_Ah! É? E pode me dizer que será a atriz principal? _ Falou bravamente, muito irritada por estar sendo colocada em segundo plano em frente de Angélica.

Daniel de repente se tocou do ponto neuvrágico daquele dilema: ela era a atriz principal. Os ensaios efetivos para fechar os detalhes finais começaram naquela semana. Mas e se ela não se recuperasse a tempo? Mesmo que decorasse todos os textos e fizesse todas as passagens sentada, não poderia ser assim na estréia. Muito menos correr o risco de chegar próxima a data e tentar recuperar o tempo perdido ensaiando as pressas uma substituta.

_Quanto tempo vai ter que ficar com esse gesso?_ Daniel perguntou.

_O médico disse que foi grave, um mês. _ Patrícia sabia o que aquilo significava. _ Por favor, não me tire da peça! _ implorou de mãos juntas.

_Olha para mim. _ ele sentou-se ao lado da namorada e passou a mão em seu cabelo._ O teatro já está reservado, os figurinos vão chegar, hoje, e eu não posso atrasar mais um dia. Você pode depois ensaiar conosco para substituir a pessoa que ficar no seu lugar.

_Não! Não! _ ela começou a gritar com as lágrimas nos olhos e ameaçou entre os dentes: _ Se fizer isso comigo, eu termino com você!

_..._ Daniel riu decepcionado. _ Isso aqui não tem nada a ver com a vida pessoal. É um trabalho...

_Você deu o papel principal para mim! Isso é...

_Trabalho! _ Daniel emendou. _ Ou você só está pensando em ficar comigo por causa desse papel?! _ Ele levantou-se enojado, se dar conta daquilo o envergonhava.

_Eu não vou permitir que outra tome o meu lugar! _ Ela gritou e Angélica anunciou que tinha alguém buzinando do lado de fora.

_Sua mãe chegou, vem que vou te levar até o carro. _ Daniel pegou-a no colo e quando retornou a sala tinha a face tensa e grave.

_Tudo pode se ajeitar. _ Angélica que assistiu toda a cena quieta tentou dar-lhe uma injeção de ânimo.

_Temos que pensar friamente nas nossas decisões. E a minha situação agora é muito ruim. Vou ter que conversar com os outros componentes. Vamos lá? _ ele chamou Angélica para acompanhá-lo.

Os dois foram até os fundos da casa, onde havia uma grande área coberta e fechada. Encontraram Taieko e Felipe testando o som.

_ E aí, cara?!_ Felipe chamou Daniel para mais perto. _ Sente esse som!_ ele apertou um botão e começou a tocar a música de funk adultério do Mr. Catra. _ desligou a música e deu uma grande risada. _ É o melô da Catarina.

_É. _ Daniel concordou sem qualquer entusiasmo.

_Que houve?_ Anderson aproximou-se, percebendo que algo não ia bem. Felipe retirou os fones do ouvido e se deu conta de que aquilo tinha cheiro de problemas.

Todos sentaram em um sofá e esperaram que Daniel explicasse o que estava acontecendo.

_Onde está Patrícia?_ Taieko perguntou.

_Ela se machucou correndo, teve que imobilizar o pé e não vai dar tempo de ensaiar com a gente.

_Mas e agora?_ Felipe assustou-se com o imprevisto.

_O que vamos fazer sem ela? Ela faz o papel principal! Daniel e agora?_ Anderson reclamou.

_Estamos perdidos! Não vamos ter tempo de...

Enquanto eles esperavam que a resposta para todos os seus problemas viesse de Daniel, este olhou para Angélica e depois para o chão, pensativo.

_Temos que fazer testes para a substituta. _ anunciou.

_ Do que consiste a peça?_ Angélica perguntou, tentando se colocar melhor a par da situação.

2.3.07

Cap 5: Quem é essa estranho no ninho?

A resposta para aquela pergunta seria o ponto auge da minha vida e ela tinha quer ser positiva. Para aumentar ainda mais minha ansiedade, que a todo custo eu tentava esconder impedindo que minhas mãos parecessem trêmulas, o telefone toca:

_ O que? Você caiu?_ Daniel fez uma careta de susto ao atender o telefone. _Onde você está? No parque, claro, to indo pra aí._ desligou e olhou para mim.

_Aconteceu alguma coisa grave?

_É, minha namorada torceu o pé. Desculpe, mas eu vou ter que correr...

_Hum, claro..._ consenti com a cabeça. Agora seríamos expulsos dali e eu teria que aguardar o bendito telefone que todos prometem fazer aos candidatos a emprego, mas que nunca fazem.

_ Ele deu um tapinha na testa se lembrando de algo._ Pior que eu tinha que receber os figurinos da peça que vão chegar..._ Olhou o relógio prateado no pulso._ Daqui a pouco.

_Eu recebo!_ falei prontamente, oportunidades são coisas que, nas condições que vão a minha vida, não podemos deixar passar._ Eu posso ficar aqui, resolver isso para você.

_Você?_ Ele olhou para mim agora com real atenção e não podia negar que precisava de ajuda._ Tudo bem. O parque é aqui perto, dependendo chego até antes... As pessoas da Companhia vão chegar, abre o portão para elas. O portão você abre através do interfone lá na cozinha._ apontou._ E tem os alunos novos que...

_Deixa comigo! Vai logo!_ falei para que ele confiasse em mim._ Ela deve estar morrendo de dor.

Eu sei o quanto isso é condenável, mas esse pé da namorada dele me pareceu um empurrãozinho divino, perdoe-me, Deus, pelo trocadilho.

Daniel saiu correndo e eu finalmente estava ali com as mãos na cintura. Eu conseguira!

_Rique, você está comendo esse lixo!_ tomei a pizza da mão dele, mas um pedaço ainda tinha ficado na boca e me embolei no varal de queijo._ Cospe isso! Cospe!_ mandei._ Olhe suas mãos cheias de Katchup!_ Balancei a cabeça para os lados e peguei-o pelo braço.

Atravessei um corredor que levava até a cozinha e o coloquei sentado em cima da pia:

_Essa comida vai te fazer ficar gordo, com as veias do coração entupidas, cheias de oxidantes...

_Eu vou ter que vomitar?_ Rique perguntou enquanto enfiava as mãos debaixo d’água e eu enchia-a de detergente.

_Não, agora já era!_ falei irritada._ Agora você vai ficar sentado quietinho na sala, vendo televisão.

A casa parece que tomou vida própria poucos minutos depois que Daniel saiu. O interfone não parou de tocar. Recebi três jovens no portão:

_Oi, deixa eu me apresentar, eu sou a Angélica, o Daniel me contratou para ser a administradora daqui. Ele deu uma saidinha, mas já volta. Vocês quem são?

_Felipe._ um rapaz de gorro na cabeça e cabelo comprido apertou minha mão.
_Eu sou a Taieko._ a japonesa sorriu timidamente e também se apresentou.
_Nós somos da companhia de teatro, a gente vai para a sala de ensaios, então. _ informou o Felipe.
_Claro. _ Consenti com a cabeça._ E você quem é?_ perguntei ao rapaz que ficou parado e com o olhar perdido na direção em que iam os dois amigos.
_Anderson._ respondeu simplesmente e tomou o mesmo rumo, sem aperto de mãos, sem qualquer afetividade. Ele não devia estar num bom dia.

Rique colocou a cabecinha na porta:
_Mãe, o telefone está tocando.
_Ah! Eu já vou._ respondi correndo para dentro._ Fique no lugar onde eu mandei._ lembrei-o.

Corri até uma sala de onde vinha o som do telefone e deparei-me com um aconchegante escritório. Ou seria biblioteca? Havia muitos livros.

_Alô?_ atendi.
_Eu sou a mãe de uma aluna das aulas de violão. Eu queria..._ a mulher começou a contar que não poderia pagar a rematrícula naquele mês e depois dela veio outro e mais outro telefonema que tive que desenrolar no chute e na intuição, sem Daniel para me apoiar. Mas tudo ia muito bem. Eu disse ia:

_Ai, eu não acredito!_ ouvi um grito vindo da sala. Franzi a testa e corri para lá.

Daniel estava de volta com a sua namorada no colo. Deixou-a sentada no sofá com seu gesso ainda molhado e pesado em cima de uma almofada. Estava sujando tudo. Que aflição.

_Como essa desgraça pode acontecer?! _ ela só sabia gritar.

_Não fala "desgraça"._ Rique consertou.
_Rique!_ olhei-o de cara feia.
_Mas, mãe, você não diz que essa palavra é feia?
_Rique os outros podem falar..._ disse baixinho, super sem graça.
_Ah! Podem? Por quê?_ ele franziu a testa.
_ Rique vai ver tv?!_ falei entre os dentes e depois sorri constrangida.

_Quem é você?_ a garota se deu conta da minha presença e parece que não gostou do que viu._ Essa é a administradora de quem me falou?_ apontou para mim e olhou fuzilante para Daniel.