25.3.07

Cap 15: Dando vida a personagem

Angélica ficou algum tempo olhando o palco parada sozinha no meio do salão. Pelo tempo que telefonara, Felipe, Anderson e Taieko já estavam para chegar. Ela ergueu as páginas do script que tinha em mãos e checou se todas as frases estavam realmente em sua memória. Ela sabia que poderia falhar, já que o tempo é capaz de enferrujar um talento. Mas queria arriscar, tomar aquela decisão sozinha, independente da ordem de qualquer pessoa.

Angélica olhou o relógio no pulso marcando dez horas da manhã. Era hora de ligar para Daniel. Por fim sacou o celular do bolso e discou.

_Alô?_ ele atendeu o telefone do escritório e reconheceu a voz dela do outro lado. _ Onde você está? _ estranhou aquela ligação.
_Daniel, queria que você viesse aqui na sala de ensaios, pode ser? Tô te esperando.
_Tá, mas o que está acontecendo?_ ele não entendeu nada.
_Por favor, vem aqui? Está tudo bem, não se preocupe._ tranqüilizou-o.
Daniel levantou-se e caminhou para os fundos da casa intrigado. Mas antes que chegasse lá, o interfone tocou. Eram seus três amigos. O que eles queriam? Não vinham vê-lo desde a última reunião em que Daniel informara que a peça era inviável por falta da atriz principal.
_ Nós viemos ver a Angélica, ela ligou para a gente hoje de manhã bem cedo. _ Anderson foi o primeiro a dar uma explicação para a visita repentina deles.
_É?_ Daniel definitivamente estava perdido._ Ela também me ligou agora pouco, disse que era para eu encontrá-la na sala de ensaios...
_Ela também disse isso para a gente. _ Taieko contou.
_Vamos até lá então, galera?! Agora sou eu que estou curioso!
_’Bora!_ Anderson também se animou e eles seguiram pela lateral da casa até chegarem aos fundos. Deram de cara com a porta fechada e um aviso pregado nela dizia: “Entrem e sentem-se”.
Eles entreolharam-se e Taieko tomou a iniciativa de virar a maçaneta. Aparentemente estava tudo normal e nos seus devidos lugares, exceto pelas quatro cadeiras de frente para o palco. Felipe ainda gritou por Angélica e sua voz ecoou pelo grande salão. Daniel fez sinal com a mão para que parasse, não queria quebrar o clima de surpresa e expectativa.
_ O que significa isso? _ Felipe apontou para o palco vazio.
_Eu não sei, cara! To tão perdido quanto voc...
_Ah! Essa vida de mãe de família..._ Angélica surgiu por uma escada por trás do palco e sua voz silenciou o grupo, que a olhou atônito.
Ela vestia um roupão de banho e tinha os cabelos escondidos por uma toalha em forma de turbante.Daniel sentiu os pêlos dos braços arrepiarem.
Angélica sentou-se diante de um móvel voltado de frente para o palco e com um algodão fingia remover a maquiagem, olhando-se em um espelho invisível. Eles reconheceram que aquele era o terceiro ato da peça, o único que pedia a atuação apenas da atriz principal. Ela, então, estava assumindo aquela tarefa para mostrar para eles que era capaz de ajudá-los a seguir com a idéia? Essa era a pergunta que passava na cabeça de todos.

_Eu tive um dia pesadíssimo! _ Ela olhou para frente e parou de se demaquilar. _ Coloque as crianças fora da cama! _ levantou-se._ Dá o leite para o gato, põe o pão na mesa... _ andou de um lado a outro do palco, fazendo sua voz ficar ofegante. _ Banco, feira, veterinário, escola de novo._ Respirou fundo e apertou o peito com a mão._ Ontem eu estava corrigindo o dever de casa do Paulinho. Tinha uma pergunta assim: O que o seu pai faz? Ele trabalha o dia inteiro. O que sua mãe faz? _ ela fez uma ligeira pausa._ Minha mãe não faz nada, fica em casa o dia inteiro. _ O rosto de Angélica incorporou um semblante de ironia. _ Incrível!_ balançou a cabeça para os lados e arrancou um leve riso de Felipe. _ Todo dia é sempre igual. _ ela pegou o diário que estava na penteadeira e o abraçou. _ Daqui a pouco chega o Ronaldo arrotando o macarrão com coca-cola. _ Suspirou profundamente e caiu sentada em cima da cama que Daniel havia colocado ali, por sugestão sua, no último ensaio._ Sexo depois de dez anos de casada é assim..._ Angélica fez um ar de tédio absoluto. _ Igual aquela lojinha de conveniência. Não tem nada de diferente, mas às quatro da manhã está ali..._ Apontou para a cama.

Os quatro riram. Conheciam aquele texto como o pai-nosso, mas na interpretação de Angélica conseguia ganhar vida. Eles olharam para Daniel, como se ele fosse responsável por convencê-la a encarar aquele desafio. Tudo parecia um grande milagre para ele.

Angélica dominava o palco, parecia estar no próprio quarto, totalmente à vontade. Ao terminar o trecho que ela havia escolhido para mostrar-lhes, parou em pé, de frente para sua pequena platéia e sorriu, deixando a personagem sair de seu corpo.

Ela estava ansiosa para saber o que eles acharam.

Nenhum comentário: