23.3.07

Cap 14: Uma sensação de querer fazer uma coisa

"Enquanto eu estava no meio daquelas pessoas, pensei no poder tão forte capaz de acimentar todos os diferentes tipos em um só pensamento, uma só crença, um só lugar. Formavam juntos uma massa manipulável e feliz. Feliz por acreditar que tudo que seguiam era o certo, não havendo outros caminhos, nem salvação para aqueles que não participassem daquele seleto grupo. Respeitei a ingenuidade de cada um e procurei manter-me sério e com uma postura de imparcialidade a fim de preservar Angélica de qualquer constrangimento, pelo contrário, desejava que ela nem desse por minha presença ali. Seguia assim, todas as coordenadas de minha mãe. Ela me aconselhara antes de criticar Angélica, tentar entender o universo no qual ela estava inserida. Tudo que pude concluir era que aquela estrutura era mais forte do que qualquer movimento de força que eu pudesse fazer para abalá-la na mente de Angélica. Não havia jeito, essa batalha era completamente perdida. "

Daniel fechou o diário e ficou ali imóvel em sua cadeira. Não tinha muito em que se preocupar, já que Angélica conseguia praticamente catalogar todos os seus compromissos e deveres, não havendo um que não estivesse “dentro do orçamento” e “das medidas previstas”. Aqueles bordões já se tornaram quase uma pilhéria para ele. Tudo corria perfeitamente bem, novos alunos surgiam para as aulas de violão; a companhia de dança se preparava para uma apresentação na festa do bairro e as contas milacrosamente seguiam em dia. Só o grande vazio e tristeza era saber que sua peça morrera, antes mesmo de chegar ao palco. Como pudera mentir para seus amigos? A que ponto chegara? Por que não lhes dissera que não havia atriz nenhuma para substituir Patrícia? Sua esperança de que Angélica pudesse se encantar com o brilho e a glória de ser uma estrela era uma mera projeção da figura de Patrícia naquela intrigante mulher que habitava sua casa.

Ela era muito diferente. Não tinha o espírito adolescente de quem deseja aparecer a qualquer preço, não mede riscos e tem coragem para cometer as maiores loucuras. Tudo nela tinha um grau de prudência e racionalidade que a tornava incompatível com Daniel. Era nisso que ele refletia neste momento sentado sozinho, às dez e meia da noite, no escritório. Como, então aquela equação conseguia dar resultados positivos?

_Posso apagar a luz da sala ou você ainda vai voltar para lá?_ Angélica apareceu na porta, era rotina sua verificar se tudo estava em perfeita ordem, antes de dormir.
_Pode, claro.
_Tá..._ ela continuou em pé, com ar reticente de quem viera até ali por outro motivo. _ É... Você está muito ocupado agora?
_Não. Não _ Daniel recostou-se na cadeira e ficou se balançando levemente para os lados.
_Podemos conversar?_ ela entrou contidamente e parou diante da cadeira.
_Sente-se._ Daniel indicou o acento e ela se sentou. Demorou um pouco para achar as palavras. _ É... _ sorriu, olhou para baixo. _ É sobre ontem... Eu gostaria de conversar com você sobre...
_Sobre eu ter ido com vocês na igreja? _ Daniel tentou facilitar o diálogo.
_É... _ Angélica mexeu no cabelo, jogou-o para o lado. _ Eu queria que me dissesse o que passou pela sua cabeça, enquanto estava lá...
_Que eu diga?_ Daniel franziu a testa e pensou um pouco, aliás, pensou tanto que Angélica achou que não queria responder.
_ Deixa, deixa... Você deve estar cansado...
_ Eu acho que tudo que eu diga não vai mudar nada do que você crê. Porque para aqueles que não acreditam nem um argumento é suficiente. Mas para quem acredita, nem argumento é necessário..._ Daniel, enquanto falava fazia um desenho imaginário com o dedo no tampo da mesa.
_Eu não quero que mude o que eu penso, eu quero ouvir o que você acha.
_Por que isso é importante para você?_ Daniel olhou-a nos olhos, averiguando até onde poderia ir.
_Porque tem coisas que também me incomodam._ Angélica disse aquilo com uma voz para dentro, medrosa. _ Eu só queria ter alguém para conversar...
_Então, vem comigo. _ Daniel levantou-se e fez sinal para ela segui-lo.Ela olhou para os lados, franziu a testa e decidiu acatar as ordens. _ Anda, quero te mostrar uma coisa. _ Daniel sabia como ninguém teatralizar todas as situações, tornando a vida uma deliciosa cena de um contador de histórias.
Eles foram para o lado de fora da casa e chegaram na piscina. Angélica estava em seu auge da curiosidade, quando ele apontou para o alto. O que queria mostrar-lhe estava bem ali, acima de suas cabeças.
_Que tem as estrelas? _ Angélica olhou para o céu azul e limpo, com seus pontos luminosos emoldurando a lua.
_ São lindas né? _ Daniel com as mãos no bolso, olhou-a de lado. _ Muitas pessoas morreram por causa delas.
_ Ãnh?_ Angélica parecia confusa.

Daniel sentou-se em uma das espreguiçadeiras e depois se deitou. Angélica sentou em uma outra ao seu lado.

_ Um dia alguém disse que a Terra não era plana e os planetas não giravam ao redor dela e foi morto por isso. Como provar se não havia as espaçonaves, os satélites? Um dia algumas mulheres conhecedoras das ervas e da natureza começaram a curar e também foram mortas por isso. Todas essas pessoas ousaram contestar aquilo que estava sendo imposto. _ A voz de Daniel era pausada e envolvente. _ Existe de fato um Deus dentro das igrejas. Um Deus que salva, que é amor, paz e traz a fraternidade e a vida. Mas existe ali também o homem. E esses homens começam a guiar os outros homens conforme as leis que eles mesmos criaram. Esse Deus que pregam não é para todos, não é democrático, é para tão poucos. Só para os escolhidos.
_Não é verdade, eu discordo. _ Angélica começou a incomodar-se, mas não podia parar, afinal, não fora ela que incitara aquele diálogo?
_Ontem, enquanto estava lá com você e o Rique, ouvi que havia dois grupos. Aqueles que eram parte daquela comunidade e os que eram do mundo, ou seja, os que eram de fora. Para os que estão de fora não há salvação. Porque eles bebem, usam camisinha, transam antes do casamento, usam roupas curtas, ouvem a música que quiserem? O que incomodam não é bem o que as pessoas fazem, mas como elas tem o livre arbítrio de fazerem o que bem quiserem, sem seguir as ordens de um ditador. Isso é deixar a massa dispersa. Para evitar que isso aconteça as sociedades judaico-cristães impregnaram seus fiéis com o sentimento da culpa. Será que é coincidência as nações que foram criadas em cima do calvinismo e outras crenças que louvavam o dinheiro e o trabalho serem hoje em sua maioria de primeiro mundo? Será que é coincidência pura o fato do louvor a pobreza ter sustentado uma massa sempre disposta a dar tudo que tem para continuarem sempre no mesmo estrato social?
_Não posso chamar de coincidência ou não, mas também você não está considerando uma ordem enorme de outros fatores...
_Pode ser... _ Daniel deu de ombros, não estava nem um pouco preocupado em debater idéias, suas opiniões eram muito fortes e firmes.
_Já está comprovado que as religiões fazem bem, renovam a vida das pessoas, que...
_Angélica, eu não disse que não era bom._ Daniel consertou. _ Apenas não é totalmente certo o sistema de escravidão camuflado que existe. Olhe para você mesma! Deixou de fazer um monte de coisas, porque alguém te mandou? Eu te dei a chance de brilhar em uma grande peça e você mentiu para si mesma que não teve a menor vontade de tentar?
_Ah! Lá vem você com essa história?! _ Angélica não gostou daquele assunto vindo à tona.
_Tudo bem, esquece... _ Daniel continuou olhando as estrelas.
_Sua mãe nunca te levou a nenhuma igreja, não te deu nenhuma religião?
_Não, nunca me obrigou. Mas aprendi muito com uma pessoa, uma pessoa maravilhosa... _ Daniel sentou-se e pareceu que iria se levantar para entrar, mas não, sentou-se para ficar de frente para Angélica._ Foi a pessoa mais genial que eu já pude conhecer... Eu amava ela como minha mãe. Na verdade, ela foi para mim uma avó.
_Você fala no passado, ela já morreu?
_Já..._ Daniel massageou a palma das mãos, balançou levemente a cabeça para os lados e respirou fundo. _ Quando ela faleceu, eu lembro bem, eu cheguei da escola todo suado, tinha jogado a tarde inteira futebol, só queria comer o pão com ovos que ela fazia. Minha mãe estava na porta do quarto e chorava. Eu nunca tinha perdido ninguém. Mas ela era muito para mim. Muito mesmo. Se chamava Fátima. Morreu muito velha mesmo, mas morreu sorrindo. E parece que eu ainda posso entrar correndo, que ela vai estar na cozinha preparando a comida que eu gostava... _ Daniel sentiu que a voz ia embargar.

Ele olhou para Angélica e pensou na foto da menina que havia na estante da sala da casa da sua mãe. Fátima sempre que limpava os móveis, pegava a foto por alguns instantes e mergulhavam em um silêncio. Sua mãe lhe contara que Fátima cuidara de Angélica também, enquanto esta ainda era muito pequena e sua mãe Alice estava em coma. No período que o pai de Daniel ainda achava que Angélica era sua filha, Fátima também fez de tudo para preservar a menina de toda aquela confusão em que vivia aquela família. Talvez, vó Fatinha, como chamava, iria adorar ver a mulher que hoje é a garotinha da foto.

_ A gente estava falando sobre religiões, quando você se lembrou dessa mulher...

_Ah! Sim!_ Daniel retomou a origem do assunto. _ Ela me ensinou muito sobre as religiões. Era uma mulher extremamente sábia. Depois me interessei a ler livros, pesquisar sozinho e me interar das coisas. O conhecimento liberta, te abre a mente para outras visões de mundo._Bom, te trouxe para ver as estrelas e acabamos falando de tanta coisa... _ Daniel levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos._ sua posição favorita de recolhimento.

_Eu que ocupei seu tempo... _Angélica riu e levantou-se também.
_É... _ era a vez dele estar procurando as palavras. _ Sua mãe disse que você era uma grande atriz.
_Minha mãe? Só pode ser uma piada! Ela sempre falou que isso nunca me levaria a nada.
_Enfim, ela falou isso uma vez para minha mãe. _ Daniel reafirmou._Eu gostaria de te ver atuar. Só para ver mesmo. Um dia que se sentir a vontade, você não esquece tá?... _ Daniel sorriu e entrou.

Angélica olhou mais uma vez as estrelas e sentiu um frio na barriga, uma sensação de ter vontade de fazer uma coisa, mas ter medo.

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