13.3.07

Cap 9: Zona de perigo

_ “Eu nem sei porque estou escrevendo aqui. É como se eu estivesse compactuando com isso tudo, sinto medo de estar fazendo algo errado. Esse medo me persegue como uma culpa de 50 quilos de chumbo nas costas, que me impede de ser feliz por completo. Estar nessa casa é um paraíso, tenho agora um lugar para morar e perspectivas para meu filho. Mas ela também é um inferno, onde todas as tentações me estão à prova, mas eu resisto.

Essa peça é um nojo. Como podem querer falar de tanta promiscuidade? Eles estão propagando a mulher da vida! E ainda por cima fazem tudo mal feito. Não que eu quisesse ser parte dela, mas está tudo errado, as posições dos personagens no palco, o figurino, o cenário então? O Daniel pode entender muito de ter uma casa de cursos de artes, mas de fazer teatro ainda é fraquinho...

E que homem de me mover as entranhas mais adormecidas?! Ele merecia ser chicoteado cada vez que me fizesse transpirar por dentro da roupa, quando vem falar muito perto do meu pescoço. Tem vezes que só um banho frio para me livrar de todos os pensamentos pecaminosos. Essa carne ainda me fará cair outra vez no precipício. Não vou, não deixo!

Ele não ajuda! Veja que hoje ele trouxe aquela barata cascuda da Patrícia para cá e explicou a ela que não poderia atuar mais na peça. Eu não posso desejar o mal a ninguém, mas quando ela perguntou se era por isso (esse “isso”, eu) que ele a trocaria, tive vontade de dar as opções a ela entre eu vomitar na boca dela ou atirá-la escada a baixo de cadeira de rodas. Imagina ela rolando na escada e arrebentando todo o resto do seu corpo? Senti um prazer mórbido e delicioso de ver aquela carinha feia ser excluída. Ainda falei com desdém que não queria o papel e esnobei. Não quero mesmo, sou outra mulher, aquele tempo passou”.

Angélica fechou o diário e guardou na gaveta da pequena cômoda que havia no quarto. Pegou a chave e escondeu debaixo do colchão. Sentada na cama, suspirou e viu que Rique dormia um sono pesado. Beijou-lhe a cabeça e acariciou-lhe os cabelos loiros. Ela, porém, não tinha o mesmo sono, infelizmente. Restou-lhe ver se estava tudo certo pela casa.

A cozinha toda arrumada, conforme pedira a nova diarista. Luzes apagadas, cães no portão.

_Ainda aí? _ a voz de Daniel partiu do outro lado da sala. Angélica largou a cortina que segurava com as pontas dos dedos e sorriu.

_Olha quem fala?_ cruzou os braços, em posição defensiva.

_Eu tenho que te elogiar..._ Daniel que vinha do escritório, sentou-se no sofá e olhou com surpresa os papéis que tinha nas mãos.

_E por que seria?_ Angélica leu dinamicamente o conteúdo da folha, enquanto permanecia de pé em sua frente. Descobriu que ele se referia ao relatório de todas as providências que tomara.

_Você organizou a ficha dos alunos no computador, a contabilidade dos pagamentos... E, putz, adorei suas sugestões de fazermos propagandas daqui em panfletos e tudo mais..._ Daniel continuou discorrendo sobre os toques que Angélica lhe dera com respeito a fazer consertos e compras de materiais e eletrodomésticos para a casa de cultura.

_E tudo está dentro do orçamento._ Ela garantiu-lhe.

_ Quando você terminou a faculdade?_ Daniel pareceu curioso sobre a origem daquele senso prático e administrador.

_Faz pouco tempo, um ano. Nem acredito que consegui terminar._ Ela sentou-se ao seu lado, mantendo certa distância.

_Deve ter sido difícil com um filho pequeno...

_Oh! E foi..._ ela riu e sentiu-se vitoriosa de ter chegado até ali.

_Onde está o pai de Rique?_ Daniel perguntou, sempre com sua cortante espontaneidade.

_Eu não gostaria de falar disso com você, se não se importa._ Angélica negou-se a responder. Lembrar de Ismael era trazer a tona a parte de derrota de sua vida.

_Então, falemos da peça. O que está achando dela?_ mudou de assunto, sem perder o entusiasmo.

_Boa... Muito boa._ Angélica foi vaga.

_Tão ruim assim?_ ele franziu a testa e fez uma careta que a provocou risos.

_O que quer que eu diga?_ Angélica encolheu os ombros.

_Eu gosto de mudanças. De ouvir idéias novas e melhorar. Por isso gostei tanto da suas sugestões..._ olhou para os papéis que deixou na mesa de centro.

_Ah! Eu mudaria algumas coisas... Por exemplo, o cenário...

_O cenário?_ ele repetiu pausadamente._ Ãnh, prossiga.

_É. Você está falando de intimidade e intimidade é o quarto. Com uma cama, um guarda-roupa e uma penteadeira antiga com uma cadeira na frente. Assim, haveria uma formação triangular. Ora ela estaria em um vértice, ora noutro...

_Hum... Mas o quê?_ Daniel não queria fechar a brecha da porta que Angélica abrira na relação de diálogo dos dois com suas opiniões.

_ Naquela parte em que ela gostaria de dançar aquelas músicas como a amiga, ela deveria dançar, senão nem parece que ela tem vontade. Ela precisa fazer as cenas do diário. Está muito separado entre a hora que ela é a mulher certinha e a mulher que lê o diário. Isso choca pouco.

_Entendi..._ Daniel viu o brilho se acender no rosto de Angélica e conteve qualquer reflexo emotivo.
_E a luz. Onde está o vermelho? Vermelho é a cor que lembra a prostituição, poderia cair um foco desse sobre a cama...

_Você quer a direção da peça?

_Não, não me interprete mal..._ Angélica balançou as mãos no ar._ Desculpe...

_Tudo bem, não me ofendeu. Eu estava brincando..._ Daniel sorriu, estava um pouco chocado de ver todas suas idéias contestadas e ainda por cima concordar que as de Angélica eram geniais.

_O que te impede de atuar?_ Daniel perguntou em voz baixa olhando-a nos olhos e com uma certa tristeza na voz.

_Eu? Não, eu não interpretaria esse papel, eu mudei a minha vida, agora eu busco fazer só as coisas certas, sérias, sou outra mulher e quero que respeite isso...

_Você sempre soube que o teatro é a mentira menos falsa da vida... No palco você é um papel, só isso. As pessoas da platéia é que tomam para si as comparações com a própria vida...

_Por que disse que eu “sempre soube”?_ Angélica interrompe-o.

_Porque eu sei que você foi uma grande atriz, que amava o teatro. _ Daniel teve que confessar e romper a barreira entre os dois.

_ Do que está falando?_ Angélica riu e tentou disfarçar.

_ Eu conversei com a minha mãe. Você tem que entender que na minha posição eu precisava saber quem você realmente era, antes de te trazer para a minha casa e te entregar praticamente o rumo da minha vida...

_Você andou me investigando?_ fez uma careta de horror.

_Bom, você está encarando isso da pior maneira. Apenas a minha mãe me contou que você era filha de uma amiga de quem tinha muito carinho e que sempre soube notícias suas durante muito tempo e...

_O que ela sabe sobre mim?

_O que todos sabiam... O que sua mãe contava e...

_Não acredito..._ Angélica olhou para o alto para conter as lágrimas, levantou-se e pediu licença. Pensava que poderia guardar só para si o que se passara e sua mãe fazia questão de pegar um megafone e contar para todo mundo?

_Angélica..._ Daniel levantou-se e caminhou atrás dela, até que conseguiu segurar seu braço. _ Está tudo bem... Não tem por que se envergonhar... Você chegou aqui e venceu, e lutou e tudo passou..._ tomou fôlego.

_Eu sei disso, não precisa me lembrar._ Angélica puxou o braço e não deixou de ser arrogante, quando partiu para o quarto sem dar mais brecha para Daniel.

Nervosamente tentou reabrir a gaveta. Impunhou a caneta sobre o diário e escreveu:

_Não confiar em ninguém. _ envolveu o nome de Daniel pelo meio do texto e puxou uma seta, debaixo da qual escreveu. _ Perigo. Perto demais.

Eliane

Um comentário:

Mercia disse...

Nossa!!!!! que mulher misteriosa!!!
qual é o passado tão tenebroso que ela esconde???
adorei!! como sempre!!!
beijos!